Armageddon Time (disponível na Amazon Prime Video), o longa mais recente de James Gray, nos mostra que a nossa sociedade é um jogo de cartas marcadas (“rigged game”), com o resultado já previamente definido (por quem? Ora, pela elite que manda no mundo). Sendo uma trama coming-of-age (assim como Licorice Pizza [idem], de Paul Thomas Anderson, lançado no início de 2022), o que James Gray faz é nada menos que a versão judaica de Silêncio (Silence, 2017), de Martin Scorsese: como resistir em um mundo indiferente, cretino e cruel com aqueles que não são os “eleitos”.
Gray faz um de seus filmes mais pessoais (e olha que ele é um cineasta que sempre aborda a sua própria experiência familiar e de vida em seus projetos), com uma belíssima fotografia outonal de Darius Khondij e interpretações afiadíssimas de um elenco de peso. Em uma época e uma cultura doentes, obcecadas com suas ideologias narcisistas, em meio a um mundo regidos por códigos sombrios e incompreensíveis até mesmo por aqueles que os escreveram, e com regras de comportamento e etiquetas cada vez mais bizantinas e bizarras, Armageddon Time, assim como Silêncio antes dele, nos mostram que um dos caminhos para sobreviver é justamente naquele espaço interior que somente nós podemos acessar.
Paul Graff (Banks Repeta, numa interpretação brilhante), o duplo do próprio James Gray, é um rapaz judeu de classe média e aspirante a artista. Graff tem a alma de um outsider (a alma de um artista, portanto), e ele é incapaz de se encaixar, de se assimilar com a sociedade. Seu temperamento, adolescente, é rebelde, insolente. Isso faz com que ele forme uma amizade com Johnny Davis (Jaylin Webb), um garoto negro, e seu colega de classe. Por classe, entenda-se a sala de aula, pois Gray deixa bem claro que, não obstante os dois meninos se tornem unha-e-carne, há barreiras intransponíveis entre os dois: a de classe social e econômica, e a de raça. Uma das injustiças do mundo que Paul não tarda a aprender é que ele, por ser branco, possui mais vantagens e oportunidades no mundo. Mesmo estando entre antissemitas (e Gray faz referência o tempo todo ao Armageddon judaico, isto é, o Holocausto, do qual os avós de Paul são sobreviventes), ele ainda pode se disfarçar. Isso é impossível para Johnny. Armageddon Time, portanto, é uma narrativa de formação, um Bildungsroman onde Paul deve aprender os seus caminhos pelo mundo, e a forma injusta como esse funciona. O crítico Nicholas Russell, que escreveu a melhor e mais detalhada crítica do filme de Gray, The Unflattering Portrait, percebe que, sendo um relato em grande parte autobiográfico, Gray é corajoso ao expor a sua covardia no passado, um retrato que de si mesmo que não busca desculpas ou apaziguamentos sobre si mesmo. Mas isso, como Russell também nota, não significa que Gray se vitimize ou mesmo faça um filme banal sobre o desejo por justiça e pela correção do mundo.