– por Henrique Pereira
“Only one is a wanderer, but two are always going somewhere.”
A obra que é considerada por muitos como a quintessência do cinema, Vertigo, é intitulada por uma palavra que denota uma sensação de tontura, vertigem, mas que também predica as conotações da visão de um redemoinho (vertigine) e de um movimento giratório (vertere) em suas raízes etimológicas. Todas estas acepções estão perfeitamente encapsuladas na abertura do filme, cuja polissemia irrompe da elegante exploração dos contornos de um globo ocular, que gera o traçado de uma espiral, de uma roda, do carrossel, da ciranda, do Samsara e de todos os homólogos paridos nas profundezas do abismo. Esse é um símbolo que deve ser explorado ao máximo se quisermos ter êxito em nossa busca pelo entendimento da “obra quintessencial do cinema”, por se tratar justamente do símbolo quintessencial do cinema.
O olho enquanto símbolo é o órgão associado à percepção intelectual e à transição da multiplicidade para a unidade. É através do horizonte que contemplamos a vastidão pluripotencial da realidade com nossos próprios olhos, e é através do olho interior — o terceiro olho, o olho da mente — que contemplamos a verdade unitária e inequívoca. Quando o duplo de Marlene Valdes (Kim Novak) diz a John “Scottie” Ferguson (James Stewart) que “only one is a wanderer, but two are always going somewhere”, ela não fez nada menos do que uma profecia a respeito do fim último da jornada caleidoscópica e da alquimia de cores que contemplamos diante de nossos olhos: juntos, o ex-policial-agora-detetive-particular Scottie e a amante-cúmplice-döppelganger Judy Barton estavam para embarcar numa viagem de retorno à unidade, uma unidade dissolvida na ruína das vocações, dos gêneros narrativos, fragmentada e dispersada no contexto da instauração da arte moderna enquanto um exercício mimético romântico e romanesco, que tem no cinema enquanto arte do múltiplo seu baluarte e sua égide.
Entretanto, é justamente por contemplar e capturar esse processo de dissolução ininterrupta das paixões que o cinema se revela aqui como uma arte abissal: atingida sua forma final, o cinema se torna homólogo ao pico do furacão e ao fundo do abismo, que borra a visão por meio do erotismo inquebrantável das imagens e deposita todas suas fichas na retomada do espírito da tragédia, do fatalismo, em reflexão muito semelhante àquela de Jean-luc Godard em Le Mépris. O olho e o abismo se tornam um só, e é na captura dessa natureza quimérica, simultaneamente imersiva e meditativa, alquímica e católica, que repousa a genialidade suprema da magnum opus do mestre do suspense. Alfred Hitchcock foi um católico praticante por toda sua vida, assim como o maior alquimista do cinema. É nessa duplicidade que Vertigo constrói seu argumento, narrando a trajetória de um herói abissal, assim como fora o Capitão Ahab, que carrega consigo tanto uma intuição afiada para a verdade investigativa quanto uma ressonância física e psicológica com o abismo.