#unamuno: A Canção de Amor Como Uma Prece
Um comentário (e uma tradução) ao soneto 76 de William Shakespeare
– Tradução e comentário por Pedro de Almendra
SONETO LXXII – William Shakespeare
POR QUE cobrir meus versos de poeira
Em vez de os pôr ao sol e a novos ares?
Por que conservo a minha arte alheia
A outro jeito de louvar-te os lábios?
Será meu dicionário tão restrito,
Que no início de mais um soneto
Já se conheça a rota previsível,
Com que conduzo a rima ao seu desfecho?
Ouve, querida; é a ti que sempre canto,
Teus olhos e o Amor são meu pretexto;
E no meu verso não se conta um ano
De quando te escrevi a vez primeira:
O sol é velho e novo a cada dia
E meu amor é outro ao repetir-se.
No soneto 76, Shakespeare confessa ao leitor (no caso, à amada a quem escreve) que não fez senão repetir uma velha fórmula em todos os seus poemas e que só escreve sobre um único tema. Este poema, como os outros 75, é só mais um soneto de amor em nada distinguível do restante . Seu verso está coberto de poeira, e não conta, fato que afirma com certo orgulho, com recurso inusitado, sofisticação ou inventividade alguma. Pela primeira linha já é possível prever a última, mas, entre elas está escondida uma verdade profunda acerca da “canção de amor” — a tradição de Petrarca e Leonard Cohen.