#unamuno: A Imitação de Nosso Senhor Dom Quixote (2)
Até mesmo uma obra-prima suprema tem seus críticos ferozes
Para substituir a primeira temporada do Não É Entrevista (calma, leitor, a seção voltará em breve, completamente remodelada), hoje começa uma nova parceria no Não É Imprensa (NEIM): a da Revista Unamuno, uma célula de jovens talentos literários, editada por Pedro de Almendra. Toda terça e quinta, teremos ensaios, contos e poemas que comprovarão a existência de uma minoria talentosa que se importa de verdade com a cultura do nosso país e que, por isso, só tem o futuro a oferecer. Visite também o Twitter e o Instagram da publicação.
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[Leia a primeira parte do ensaio]
Por Simon Leys
O primeiro crítico a ser considerado é Vladimir Nabokov. Nabokov deu seis palestras sobre Dom Quixote quando ele foi professor palestrante em Harvard, durante o início dos anos 50. Enquanto preparava seu curso, primeiramente ele se apoiou em uma memória retida do romance, querida por ele na sua juventude. Logo, contudo, ele sentiu a necessidade de voltar ao texto – mas, desta vez, ele ficou chocado com a grosseria e selvageria da narrativa de Cervantes. Nas palavras de Brian Boyd, seu biógrafo: “ele detestou as gargalhadas que Cervantes queria provocar em seus leitores a partir das derrotas de seu herói e comparou, repetidas vezes, a diversão perversa do livro com a humilhação e crucificação de Cristo, com a Inquisição espanhola e com a tourada moderna.”.
Ele gostou tanto de vociferar contra Dom Quixote na frente de uma ampla audiência estudantil que acabou, eventualmente, chateando um certo número de colegas de faculdade e foi, por isso, avisado: “Harvard pensa diferente”. Quando, anos depois, ele concorreu a uma cadeira em Harvard, sua candidatura foi rejeitada, o que foi um golpe amargo. Outros fatores devem ter contribuído para a recusa, mas suas aulas sobre Dom Quixote tiveram alguma parte neste fiasco.
Nabokov sempre encontrou uma alegria particular em desafiar opiniões assentadas. Sobre Dom Quixote, seu gosto pelo não convencional ajudou-o a formular pelo menos uma observação original e importante: contrariamente ao que a maioria dos leitores acredita, a narrativa de Dom Quixote não é feita de uma série monótona de desastres. Depois de uma cuidadosa averiguação, episódio por episódio, Nabokov conseguiu demonstrar que o problema de cada aventura era, na verdade, bastante imprevisível, e ele até contou as vitórias e derrotas de Dom Quixote como se fosse uma partida de tênis cheia de suspense até o fim: “6-3, 3-6, 6-4, 5-7. Mas o quinto set nunca será jogado. A morte cancelou a partida.”.
Seu desgosto pelo tratamento sádico que Cervantes dá a Dom Quixote foi tão grande que ele excluiu o livro de suas aulas regulares sobre literatura estrangeira em Cornell: ele não conseguia suportar habitar no tema por mais tempo. Mas o corolário da sua hostilidade virulenta em direção ao escritor era uma admiração amorosa pela criatura, expressa em tributo comovente:
[Dom Quixote] escondeu-se por trezentos e cinquenta anos pelas selvas e tundras do pensamento humano – e ganhou em vitalidade e estatura. Nós não rimos mais dele. Seu brasão é a piedade, seu estandarte é a beleza. Ele representa tudo que é gentil, desamparado, puro, generoso e galante.