#unamuno: Everybody Hates Itamar (1)
Uma análise sobre "Torto Arado", o romance da cultura diletante
– por Jessé de Almeida Primo
Estou começando a ler Torto Arado, de Itamar Vieira Junior (Todavia, 2019), que se inicia com uma recordação de infância na qual as irmãs Bibiana e Belonísia, xeretando um baú da avó, talvez uma praticante de macumba ou adepta do candomblé — não sei bem, pois aparecem, por vezes, expressões generalistas como “feiticeiros”, “feiticeira” e “suas crenças” —, encontram uma faca “embrulhada em pedaço de tecido antigo e encardido”, com a qual, acidentalmente, Bibiana corta a própria língua ao colocá-la em sua boca:
Foi quando coloquei o metal na boca, tamanha era a vontade de sentir seu gosto, e, quase ao mesmo tempo, a faca foi retirada de forma violenta. Meus olhos ficaram perplexos, vidrados nos olhos de Belonísia, que agora também levava o metal à boca. Junto com o sabor de metal que ficou em meu paladar se juntou o gosto do sangue quente, que escorria pelo canto de minha boca semiaberta, e passou a gotejar de meu queixo. O sangue se pôs a embotar de novo o tecido encardido e de nódoas escuras que recobria a faca.
Belonísia também retirou a faca da boca, mas levou a mão até ela como se quisesse segurar algo. Seus lábios ficaram tingidos de vermelho, não sabia se tinha sido a emoção de sentir a prata, ou se, assim como eu, tinha se ferido, porque dela também escorria sangue.
Esse “algo” que Belonísia tenta “segurar” é, como mais adiante será esclarecido, a própria língua: “Ouvi Donana perguntar o que estávamos fazendo ali, por que sua mala estava fora do lugar, e que sangue era aquele. ‘Falem’, disse, nos ameaçando arrancar a língua, que estava, mal ela sabia, em uma de nossas mãos”.
Bem, sabemos que a língua é um dos órgãos mais reativos e autodefensivos de nosso corpo, de modo que, mesmo havendo decidida intenção de arrancá-la, ela irá recuar ao fundo da boca, não sendo à toa que, nos procedimentos de extração, seja para fins médicos ou por puro exercício de crueldade, é primeiro utilizado um instrumento para esticá-la, com o fito de facilitar o objetivo de extraí-la. Nem mesmo o trecho que abre o segundo capítulo, que parece uma prevenção contra a objeção dos críticos à verossimilhança do ocorrido, consegue salvar a situação. “Zeca Chapéu Grande e Salustiana Nicolau acharam que as duas filhas haviam se mutilado num ritual misterioso que, nas suas crenças, precisaria de muita imaginação para explicar”.