#unamuno: John Deely, a inteligência humana e as raízes do Brasil (1)
Eis que começa um movimento de retorno aos princípios
– por Alexandre Marques
I
Uma proporção impressionante das ideias que capturaram a atenção do século XX, e por consequência, do XXI – pensemos em Freud, Einstein e Wittgenstein – foi formulada em Viena num período curtíssimo de tempo, entre a passagem do século e a Primeira Guerra. O Ulysses, de James Joyce, o poema A terra devastada, de T. S. Eliot, e o romance O quarto de Jacob, de Virginia Woolf, as três obras capitais do modernismo inglês, foram publicadas exatamente no mesmo ano, 1922. Não se trata de um fenômeno restrito ao século XX. No ano de 1806, Goethe terminava a primeira parte do Fausto e Hegel a Fenomenologia do Espírito. Por falar em alemães, as obras capitais do romantismo alemão foram escritas em um período de não mais que trinta anos, na passagem do século XVIII ao XIX, por membros de um pequeno círculo que incluía Goethe, Hegel, Kant e mais uns poucos outros. As tragédias que até hoje lemos foram produzidas em um espaço de tempo de não mais que 70 anos, durante o século V a.C., em apenas uma, Atenas, dentre umas mil cidades gregas. Setenta anos pode parecer muito, mas se se leva em conta a duração da influência que todas essas obras tiveram, é um instante. Já no século IV a.C., não eram escritas novas tragédias, apenas eram relidas as mesmas, dos mesmos três poetas, assim como fazemos até hoje.
Esses são alguns exemplos proeminentes de um fato conhecido, mas não, talvez, meditado como se deveria, da história cultural: uma tradição literária não cresce de modo estável e constante como, por alguma razão, esperamos, mas sim através de saltos qualitativos que ocorrem no espaço de uma ou poucas gerações. As formas, conceitos e atitudes que alimentam o interesse das classes educadas de uma sociedade por séculos são pensadas quase ao mesmo tempo, por poucas pessoas. O contínuo trabalho sobre esse material compacto é conteúdo de uma tradição, no sentido de tradição literária.
O fato de que o ritmo da história seja, como o dos hexâmetros gregos, composto de um período curto e um longo, impõe que a cada tradição caiba apenas um momento fundador, perfeito, o qual ela vive na forma de comemorações, comentários, glosas e disputas. Ao contrário do que pode parecer a certa concepção romântica da criatividade humana, essas práticas são absorventes o suficiente para perdurar de modo fecundo e apaixonado por muitas gerações. Não, contudo, infinitamente. O tempo longo um dia se exaure. Chega uma época em que as camadas de explicações, a atenção ao detalhe, o comentário do comentário e as disputas intermináveis aparecem como causa de obscurecimento, não de acréscimo de saber. Um grupo é, então, levado à conclusão de que a inteligência original do momento fundador da tradição precisa ser recuperada. Eis que começa um movimento de retorno aos princípios. Passado algum tempo, o próprio movimento de recuperação, que se dará em um prazo relativamente curto, de grande euforia intelectual, será visto como um “renascimento”. Se for realmente recebido pela posteridade, o renascimento, que não precisa ser chamado por esse nome, nem ser feito de forma historicamente consciente, será objeto de mais algumas camadas de comentários – até outro se fazer necessário. E assim sucessivamente. Um renascimento não é, portanto, em essência, um evento, nem uma época, mas um entrelaçamento indecomponível entre eventos, memórias de eventos, memórias de memórias, intelecções e expectativas de futuro.