#unamuno: Machado de Assis na linha da sombra (1)
O Bruxo do Cosme Velho visto pelo prisma de Joseph Conrad.
— por Hugo Batista
D’autres fois, calme plat, grand miroir,/ De mon deséspoir
Baudelaire
Joseph Conrad, em A linha de sombra,[1] nos diz que há na vida um momento em que surge, de repente, enquanto atravessamos os umbrais auspiciosos providos pela fortuna, e experimentamos as monções que nos conduzem para terras mais rudes e portos mais acolhedores, sem apagar o lume de fascínio pelo desconhecido, uma linha de sombra “avisando que a região da tenra juventude também deve ser deixada para trás”.
“Esse é o momento da vida em que os momentos de que falei são mais propensos a aparecer. Que momentos? Ora, os momentos de tédio, de exaustão, de insatisfação. Momentos duros. Refiro-me a momentos em que os jovens ainda tendem a tomar decisões precipitadas, tais como casar de repente ou largar um emprego sem nenhum motivo.”[2]
Parece claro o momento em que Machado de Assis cruzou a sua linha de sombra. Era outubro de 1878 quando, a fim de se tratar de uma afecção intestinal, ele teve de interromper todas as suas atividades. A enfermidade que o abatera por seis meses acabou por induzi-lo a uma profunda introspecção, com a qual ele pretendeu depurar suas concepções acerca da vida e do homem.
A morte, que sempre rondara ao pé de Machado de Assis, tomando-lhe toda a sua família quando ainda menino, quis ter com ele face a face. Não se sabe ao certo como Machado lidou com ela, mas a impressão é de que ele comprou a segunda metade de sua vida à custa de uma visão crua e desoladora da realidade. A sua transformação se mostrou só quase um ano depois, na agressividade incontida e mal dissimulada das Memórias póstumas de Brás Cubas, quando ele, num meio sociocultural anestesiado pelo disfarce lisonjeiro, decidiu se fazer vox clamantis in deserto, mas não para anunciar uma Boa Nova, senão algumas verdades disfarçadas e esquecidas, de sabor incrivelmente amargo. Lúcia Miguel Pereira nos ajuda: “A Mário de Alencar, que lhe perguntou um dia como, depois de ter escrito Helena, pôde ele escrever o Brás Cubas, explicou o romancista que se modificara porque perdera todas as ilusões sobre os homens”.[3] Cruzada a linha de sombra, Machado não quis olhar para trás; ele, que, nas palavras de Gustavo Corção, [4] ganhara “exasperada sensibilidade aos desconcertos do mundo”, enxergou nessa crise a maior oportunidade de sua vida para elevar seu caráter e talento. Que fique claro que, paralelamente a tudo isso, o funcionário exemplar do Ministério da Agricultura, escritor de alguns jornais, rosto querido nas rodas literárias e esposo de uma portuguesa adorável permanecia socialmente intacto. Contudo, o mesmo Corção pergunta:
“Mas poderá ser feliz, por mais que o mundo ajude, quem no meio da vida descobriu, de repente, as lágrimas das coisas?”[5]
Dez anos depois de mostrar as novas caras com tanta virulência, Machado de Assis, ciente de que não haveria quem suportasse uma segunda dose da nova fórmula, e mais sóbrio diante do espetáculo triste que enxergava, publica Quincas Borba: aprimorou seu disfarce, tornou-se mais contido, mas não menos sádico. Estava inebriado com a volúpia da análise fria e retalhadora, esse ópio tão diferente, e agora não queria largá-lo.