#unamuno: O Amor que Move o Sol e os Outros Astros (1)
Filosofia, Cosmologia e Divinização em Platão e Cícero.
– Por João Pinheiro da Silva
I.
OTeeteto de Platão é, primeiramente, um diálogo acerca da natureza do conhecimento. Mas, como notou o professor Marcus Reis Pinheiro no seu magnífico artigo, Cosmologia e Transformação De Si: O Caso de Platão e Plotino, é também no Teeteto que se encontra uma das reflexões mais agudas sobre a natureza da investigação filosófica e, surpreendentemente, como esta está ligada à investigação cosmológica.
Que um filósofo seja também um cosmólogo, ou um astrónomo, é algo que choca a nossa sensibilidade moderna, tão habituada a distinções claras entre as “ciências” e as “humanidades”, o “objetivo” e o “subjetivo”, “factos” e “valores”; mas tal escândalo passaria despercebido à imaginação helénica, na qual essas distinções não só coabitavam pacificamente, como se entrelaçavam continuamente. Na verdade, a própria ideia de uma ciência perfeitamente empírica, neutra e objetiva, jamais passou perto da mente grega. Ao invés de um sujeito distante que opera sobre um objeto que lhe é totalmente alheio, o ideal científico helénico prezava pela transformação do sujeito de acordo com o seu objeto de estudo, rumo a formas mais perfeitas de ser. Mas adianto-me…
A pertinência do artigo do professor Reis Pinheiro jaz na sua análise inovadora da “digressão” (172c-177c) que surge a meio do diálogo, na qual Sócrates investiga a natureza do ócio e, por consequência, da atividade filosófica. A razão para tal desvio é relativamente óbvia: só pode buscar a verdade e o conhecimento quem é livre e dispõe de tempo para tal, ou seja, quem goza do devido ócio. O filósofo, ocioso, é assim contrastado com o homem de afazeres públicos (o político, o homem de negócios, etc.), subjugado pelos ditames da clepsidra:
Sócrates – Parece-me que os indivíduos que desde moços vivem a rolar nos tribunais ou quejandos ajuntamentos, em confronto com os educados na filosofia e estudos correlatos são como escravos comparados a homens livres.
Teodoro – E qual é a razão?
Sócrates – A que apontaste agora mesmo: o tempo de que sempre dispõem, por terem folga para conversar em paz, tal como se dá neste momento connosco, pois agora mesmo mudamos de assunto pela terceira vez. É o que eles fazem quando um novo tema lhes agrada mais do que o debatido, sem se preocuparem se a conversa dura muito ou pouco. O que importa é atingir a verdade. Os outros, ao revés disso, só falam com o tempo marcado, premidos a todo instante pela água da clepsidra, que não os deixa alargar-se à vontade na apreciação dos temas prediletos.[1]
O curioso, nota Sócrates, é que a escravatura a que estes homens se sujeitam passa-lhes completamente despercebida. São, de certo modo, escravos felizes – ou, pelo menos, ignorantes. Quando são confrontados com a verdadeira liberdade do filósofo, consideram-na ridícula e julgam-no tolo. Com alguma razão, devemos notar. O retrato que Sócrates pinta do filósofo no Teeteto não é propriamente galante: um inepto social, totalmente desligado da vida pública, que por habitar mentalmente num lugar distante da sua polis, é visto como um perpétuo estrangeiro.
Mas é justamente por ser uma espécie de inglês em Nova Iorque que o filósofo goza da sua liberdade. É a distância das coisas “terrenas”, dos negócios citadinos, dos assuntos civis, que o permite vê-los de fora e notar as suas incongruências. Daí ser capaz de notar como o discurso público é comumente deformado e como a retórica, em tais meios, passa a servir a vitória legal ao invés da verdade, num processo que torna a alma dos envolvidos “pequena e deformada”, atrofiada pela escravatura que lhes é imperceptível. Tais homens julgam-se mais inteligentes e mais sábios quando se ajustam plenamente às normas da cidade; o filósofo, por sua vez, busca ajustar-se única e exclusivamente às normas ditadas pela razão.
Platão, sempre presciente, sabia muito bem que
Nas trincheiras cotidianas de uma vida adulta, não existe isso de ateísmo. Não existe isso de não venerar. Todo mundo venera. Nossa única escolha é o que venerar. E se existe uma ótima razão para talvez escolher venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual — seja Jesus Cristo ou Alá, YHWH ou uma deusa-mãe wiccan, as Quatro Verdades Nobres ou algum conjunto inviolável de princípios éticos — é que praticamente todas as outras coisas vão devorá-los vivos. Quem venerar o dinheiro e os bens materiais, quem buscar neles o sentido da vida, nunca terá o suficiente. Nunca terá a sensação de que tem o suficiente. É a verdade. Quem venerar o próprio corpo, beleza e encanto sexual sempre vai se achar feio, e quando o tempo e a idade começarem a deixar marcas morrerá um milhão de mortes antes de finalmente ser enterrado por alguém.[2]
Servimos sempre algo, subjugamo-nos sempre a uma “norma” – e essa verdade que David Foster Wallace encapsula tão perfeitamente no excerto supracitado é um dos grandes tópicos da filosofia socrático-platónica.
A iconoclastia é uma parte significativa do trabalho maiêutico de Sócrates: é na destruição primeva dos ídolos que edificamos e que nos obstruem a vista do Bem, que começa a jornada socrática rumo ao autoconhecimento. A dúvida socrática não é, jamais, um fim em si mesmo, mas antes, o primeiro passo de uma transformação interior, a purga necessária de todas as opiniões adquiridas, de todos os preconceitos e valores irrefletidos que nos mantêm presos a idiossincrasias e incapazes de contemplar a natureza universal das coisas.
Não é, por exemplo, um mero moralismo reles que faz Sócrates rejeitar Alcibíades n’O Banquete, esse homem que, dominado pela forma mais baixa de eros, e por esta tão enlevado, é incapaz de considerar qualquer forma superior de amor. Ao longo do diálogo, Sócrates toma as paixões desenfreadas de Alcibíades como uma espécie de matéria prima a que deve dar forma, fazendo-as ascender rumo ao Belo. Mas ele resiste sempre, conduzido que é, sem sequer o saber, pela tirania do “próprio corpo, beleza e encanto sexual” que Foster Wallace mencionava. Da mesma forma, retornado ao Teeteto, os homens da vida pública são incapazes de perceber que as normas que guiam a sua vida, as “normas da cidade”, estão longe de ser as mais elevadas, tão presos que estão às relações humanas e às suas ilusões recíprocas, às falsidades discursivas que aprazem a emoção atraiçoando a razão, à servidão aos senhores em detrimento da submissão à verdade.
A norma do filósofo é outra, pois
só de corpo está presente na cidade em que habita, enquanto o pensamento, considerando inane e sem valor todas essas coisas, as desdenha, e voa por cima de tudo, como diz Píndaro, “sondando os abismos da terra” e medindo a sua superfície, contemplando os astros “para além do céu”, a perscrutar a natureza em universal de cada ser em sua totalidade, sem jamais descer a ocupar-se com o que se passa ao seu lado.[3]