– por Jessé de Almeida Primo
Lendo Pedra Bonita e Cangaceiros, de José Lins do Rego, e assim acompanhando a saga dos Vieiras, as maldições que se abateram numa família por décadas e cuja origem está articulada com um dos momentos históricos mais aterradores do nosso país, que são os sacrifícios cruentos aos pés da Pedra Bonita, ocorridos em 1838 por messiânicos sebastianistas do sertão nordestino; sacrifícios esses imortalizados por Euclides da Cunha, em 1902, num pequeno e expressivo trecho dos Sertões, e em 1971 por Ariano Suassuna no monumental O romance da Pedra do Reino, cuja personagem Quaderna (tal e qual a personagem de Bento, que protagoniza os dois citados romances de Lins) vê-se assombrada pelos fantasmas desses assassinos ritualísticos, os quais parecem mover o espírito dos jagunços que surgiram de sua família, aquela “raça de cobra,” que “odeiam vinte, trinta, cinquenta, cem anos, o tempo que durar a vida”(p.330, Suassuna, Nova Fronteira, 2017), ou, como lemos no Cangaceiros, aquela “presença da Pedra” que “veio chegando, aquela mortandade de romeiros, a fuzilaria, a terra melada de sangue, de sangue inocente”(p.298, José Olímpio, 2011); e também acompanhando as comunidades que vivem acuadas igualmente por jagunços e pelas forças do governo representadas pelos volantes, ambos dispostos ao massacre e ao estupro - o leitor tem a impressão de estar vivendo um verdadeiro inferno na terra, que se não consegue imaginar haver pior na eternidade, tão esmagador é o sofrimento de um povo e a violência a que se entrega com a mais bruta animalidade.
É de se destacar a descrição, e de grande força dramática, do horror espiritual vivido por Josefina perdendo seus filhos para o cangaço – tornando-se um deles, Aparício, chefe de um dos bandos mais sanguinários e sádicos que já passou pelo sertão –, a ponto de, atropelando os preceitos mais caros da fé, e presa de extrema loucura, enforcar-se. Uma passagem chocante que mostra o triste desfecho após décadas de destruição do espírito humano numa senhora religiosa, que era o esteio da família e que seria a última pessoa de quem se esperasse essa decisão. Antes ainda desse suicídio, Bento, seu filho, tendo a oportunidade de buscar uma vida digna, escolhe o caminho já trilhado por seus irmãos mais velhos, posto que como cúmplice. Acrescente-se a isso que o assassinato do filho do capitão Custódio, um fazendeiro que abriga Bento e sua mãe sob as ordens de Aparício, pelo coronel Eleutério deixou-o corroído por ressentimentos em razão de uma vingança tão ansiada quanto repetidamente baldada (“Tudo é a maldita questão de honra, Diniz!”, diz o “Corno desambicioso”, de Suassuna.(p.298, 2017)) até afundar na loucura e na doença física, em passagens que exasperam e prolongam por toda narrativa os momentos finais de Quincas Borba, personagem icônica de Machado de Assis, que, não tomando conhecimento da extrema fraqueza em que se encontrava, acreditava estar se autocoroando, da mesma maneira que Custódio, com uma das pernas apodrecendo, e o juízo idem, acreditava-se em condições de manter as coisas em ordem, ignorando até mesmo que se encontrava numa cadeia após uma violenta captura pelos volantes, mais ou menos nos termos do que escreveu a Onça Caetana nas paredes do quarto de Diniz Quaderna, do já mencionado romance de Ariano Suassuna, “tentando reedificar seus Dias, para sempre destroçados (p.336).”
José Lins do Rego consegue descrever essa galeria de horrores, com muita limpidez, por meio de uma crueza a que não falta elegância de exposição, numa narração ágil e diálogos muito bem escritos, que embora reproduzam a fala do sertanejo em nenhum momento recorre ao laboratorial ou à imitação que resvala na caricatura, de modo que não se desarmonizam com a gramaticalidade da voz do narrador. Sua escrita mantém essa agilidade e leveza sem em momento algum sofrer o peso da “asas de chumbo” que ameaçam as narrativas repletas de violência extrema, como sói acontecer nas narrativas de Marquês de Sade ou a Capitães da Areia e outros romances realistas-socialistas de Jorge Amado da primeira fase, fase essa da qual o grande escritor baiano se livrou tornando-se assim um dos nossos maiores, e sem precisar recorrer à ironia, que torna suportável a leitura de alguns romances existencialistas e encontrou lugar adequado nos romances machadianos.