#unamuno: Somos Todos Epicuristas (1)
Como uma visão de filosofia triunfou nos séculos XX e XXI
*Por Bernardo Lins Brandão
Somos todos epicuristas. É no universo de Epicuro e em seu Jardim que nós, contemporâneos, vivemos, nos movemos e somos. Não que para isso precisemos ser filósofos: nosso epicurismo nos mais visceral que nossas vãs filosofias.
Fernando Pessoa, escrevendo como Álvaro de Campos, em seu famoso poema Tabacaria, fala no Esteves-sem-metafísica, como se o homem comum, com suas angústias e preocupações imediatas, pudesse escapar do fardo de uma visão da totalidade, isto é, de uma metafísica. Mas, como apontava Ortega y Gasset (Unas Lecciones de Metafísica), não consigo me orientar a respeito de nada se não tenho uma orientação com respeito de todas as coisas, se não formei antes um plano do todo, isto é, se não tenho uma metafísica”. A metafísica, para Ortega, é essa nossa orientação mais radical no mundo: “não é algo fortuito, algo que alguns homens chamados filósofos às vezes fazem, mas que muito bem poderiam não fazer”, mas, ao contrário, é “um ingrediente inevitável da vida humana”. Em outras palavras, “ela é inescapável, mesmo para quem nunca se aventurou na filosofia”.
Isso parece estar em contradição com a nossa experiência de um mundo em que, prisioneiros de um metaverso digital, parecemos nos tornar cada vez mais rasos. É que não penso aqui em uma metafísica filosoficamente desenvolvida, mas em uma metafísica tácita, que não aprendemos pelo estudo de manuais, mas que absorvemos da cultura à qual pertencemos, a partir de seus ritos, narrativas e possibilidades de existência.
Poderíamos falar em cosmovisão, termo amplamente empregado desde Kant em uma pluralidade de significados, mas, para ser mais preciso, prefiro usar a expressão imaginário metafísico. Entendo-a em analogia com o imaginário social de Charles Taylor, que ele vê como algo substancialmente mais profundo que um sistema intelectual e que consiste em um mapa imaginativo, na maneira “como as pessoas imaginam sua existência social, como elas se relacionam com outras, como as coisas acontecem entre elas e seus semelhantes e quais são as expectativas que normalmente são atendidas e as noções e imagens normativas mais profundas subjacentes a essas expectativas”.
O imaginário metafísico é algo assim. Ele é o mapa, constituído imaginativamente e não argumentativamente, pelo qual concebemos não apenas a sociedade, mas a própria realidade, em seus aspectos mais abrangentes e fundamentais, e por consequência, formulamos nossas mais básicas expectativas existenciais. Trata-se do símbolo da totalidade que cada um de nós possui, ao menos de maneira implícita, por meio do qual julgamos a verossimilhança de toda construção teórica posterior. Quando estamos diante de uma metafísica que não se mostra compatível com nosso imaginário, em geral, não chegamos a compreendê-la e a tomamos como improvável. É o que acontece, por exemplo, com o neoplatonismo, que parece absurdo aos homens de hoje, mas que revela seu sentido quando o analisado a partir do imaginário dos antigos.
Ainda que um imaginário metafísico esteja sujeito a variações individuais, ele é, em geral, compartilhado por uma cultura e serve, em alguma medida, como seu fundamento, o que acredito ser válido também para a nossa contemporânea cultura liberal. Assim, embora entenda, com Charles Taylor, que nossa era secular abriga uma pluralidade de visões de mundo, acredito também que exista um mínimo denominador comum metafísico, uma koiné imaginativa, da qual a maioria de nós compartilha. Mas qual seria ela?