#unamuno: Tempo, Política e Mito em “O Homem que Matou o Facínora” (1962)
Um clássico de John Ford que, na verdade, diz muito sobre os nossos tempos
– por Victor Bruno
No último texto que publiquei aqui, falei de tempo. Não apenas de tempo, mas da desimportância da mera estética — isto é, da mera superfície — ao se apreciar não apenas um filme, mas também qualquer outra obra de arte. Aliás, falei que a própria vida é arte, de certa maneira, posto que prudência e arte são as regentes do fazer artístico e do existir em sociedade.
Por que recordar esses fatos? Porque há filmes que, por características determinadas, convidam certos tipos de espectadores a fazerem análises bastante afuniladas sobre eles, como se o crítico cobrisse os olhos com tapadeiras. Talvez um exemplo maior seja O Homem Que Matou o Facínora (1962), penúltimo western de John Ford. Como vários críticos já notaram, trata-se dum western atípico na filmografia de Ford. Aqui, o verbo predomina sobre a ação; as grandes paisagens do Oeste americano dão lugar a longas cenas situadas em salas de aula, redações de jornais, restaurantes e cozinhas. E porque o verbo é, ao menos nesta fita, maior que a ação, aqueles que, como diz Peter Bogdanovich, gostam de “ouvir filmes” se esbaldam a falar do Facínora. Afinal, quem não sabe ver encontra muito material no dizer das personagens.
Procedimentos críticos
Mas em bom cinema, e em arte em geral, falar e dizer têm equivalências. Pode ser que em alguns filmes o áudio subordine o vídeo — e este por certo é o caso de Dreyer (diretor com quem este filme trava certas relações), Hawks, Manoel de Oliveira, entre outros, — mas isso não implica dizer que os filmes mais ricos são aqueles que têm mais conteúdo “literário”. Porém, é um fato que filmes com diálogos apresentam mais possibilidades para “discussão”, especialmente se essa discussão ensejar uma perversão do que o filme quer dizer.
Facínora não é Sangue de Heróis (1948), nem O Sol Brilha na Imensidão (1953) e tampouco é No Tempo das Diligências (1939). O foco desses filmes é óbvio, é unívoco, e eu diria que é isso que os tornaram grandes obras-primas. É difícil encaixar tais obras em parâmetros pré-determinados pelo gosto ou pela ideologia do crítico (a tapadeira de ainda há pouco). Já de Facínora pode-se dizer muitas coisas, e essa diversidade de coisas implica um relaxamento da faculdade crítica, do bem olhar, do exercício intelectual e imaginativo. Caso repita-se continuamente, esse procedimento provoca uma desordem na alma, um entorpecer do intelecto, uma má vontade para a existência, uma fuga da realidade. E se a arte evidencia e exalta a realidade, furtar-se de contemplá-la implica em não saber viver — em não ser artista, “e ninguém — diz Ananda K. Coomaraswamy — pode deixar de ser um artista”. Na verdade, a falta de inteligência da parte do crítico pode bem ser um dos motivos da enorme crise existencial que caracteriza o atual ciclo histórico.