– por Leonardo Quintanilha
I
Fecho Memórias do Subsolo. Ainda um pouco impressionado, poderia começar pontificando, à maneira do mais entusiasmado tipo de crítico, que Dostoiévski é um extraordinário conhecedor da alma humana. Ou que é o maior escritor de todos os tempos. Ou que a beleza salvará o mundo. Mas com um pouco mais de critério, logo dá para notar que essas enunciações fatais, hiperbólicas ou hoje apenas insuportáveis não dizem muito de nenhum livro seu. Não revelam os tais abismos da psicologia, não provam a sua acuidade de expressão, nem lhe realçam as potências do drama.
Claro, não proponho o banimento das adjetivações apaixonadas. Nem incentivo a ocupação principal daquela espécie de tarados que, em linguagem muito própria, fala de uma obra de literatura como de um experimento de laboratório. Devemos passar do mero impressionismo, essa puberdade da crítica, sem renunciar ao bom gosto que orienta o que de melhor produziram os impressionistas — que eram muito mais do que uma gente culta deslumbrada com livros.
Assim, logo de cara sejamos honestos com as nossas impressões: Dostoiévski é sempre encantador; faz com que nos sintamos profundos, assombrados, desmoralizados. Sua verdade, que é sempre uma acusação, se transmite numa prosa tão instável quanto o espírito que frequentemente descreve, e talvez até possa ser incorporada à técnica que lhe dizem faltar. (Vamos deixar para depois as ressalvas de estilo feitas por Nabokov e as comparações de seus romances com os de Tolstói.)
Largados numa verborragia liberta, os personagens de Dostoiévski, em geral, surpreendem pela capacidade de se revelar e se dissimular ao mesmo tempo, encantando pela variedade de ideias, pela suspicácia com que as abandonam, ofendendo pela audácia com que olham, para fora do livro, como um risonho Baudelaire: Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère!