A propósito de Dostoiévski escreveu Hemingway certa vez: “Como um homem pode escrever tão mal, tão incrivelmente mal, e despertar sentimentos tão profundos?”
Num primeiro momento essa constatação poderá surpreender o leitor feliz e inocente. Alguma humildade o faria pensar que, embora pudesse lhe escapar uma escrita ruim, certamente notaria uma escrita péssima. Mas nenhum desses adjetivos, que as pessoas prodigalizam em postagens de Facebook ou Instagram tão empenhadas em merecê-los, parece combinar muito com o nome de Dostoiévski. Tudo bem, a maior parte dos méritos pode ser de outra natureza, filosófica talvez; admitamos como hipótese. Mas como alguém escrevendo tão mal poderia ter uma glória tão duradoura?
A esse mesmo leitor tudo parecerá subitamente exagerado, hiperbólico, sacana. O incômodo lhe subirá ao rosto, que ferverá ao duplo insulto: a uma causa de prazer intelectual e ao timbre do homem cultivado. Pode ser que o exprima num “nossa, que absurdo”, e vá tomar café, tirar o lixo, cuidar da vida. Pode ser que, ofendido e curioso, se veja impelido a reagir, em nome da autoridade dos clássicos, dos quais se fará defensor contra a pretensão blasfema dos que atacam um pilar do Ocidente; ou que, sendo escritores, não lhe chegam aos pés e por isso o invejam; ou que apenas não gozam do mesmo crédito na praça literária e deveriam se recolher ao próprio ridículo.
Mas Hemingway não é o único. Críticas do tipo se replicam com sinistra facilidade em Gorki, Nabokov, Tolstói e tantos outros. E é verdade que as pessoas apreciam a ideia de gostar de Dostoiévski um pouco mais do que realmente gostam dele. Caso aceitemos, porém, que não seja unanimidade, e que não tenha safadeza ou intriga no meio, impõe-se a pergunta: o que faz as pessoas voltarem tanto a essas obras imperfeitas e as leva a amá-las com um amor tão complacente?
A resposta mais fácil seria: o público não liga para essas coisas. Quer se divertir com a história, se identificar com os personagens, se sentir entretido e exultante, no choro ou no riso. Pouco lhe importam as minúcias sintáticas, espalhadas em construções cuja impropriedade até os seus tradutores censuram, junto de uma fauna verbal de “eis que”, “então”, “e daí” que um indignado manual de escrita trataria de repelir. Nem se incomodam essas pessoas com uma poética fissurada em figuras invariavelmente neuróticas, pecadoras, criminosas; talvez até o procurem por essas razões. Acabarão pensando por fim: que os críticos se ocupem dessas antipáticas formalidades e não nos encham o saco.