#vespeiro: Um Viva Ao Povo Brasileiro?
Os 40 anos do romance (problemático) de João Ubaldo Ribeiro.
João Ubaldo Ribeiro escolheu a última opção quando criou o personagem que nomeou o seu segundo romance, publicado em 1971: Sargento Getúlio. Mas não é a virtude a que estamos acostumados e que geralmente identificamos como exemplo de santidade ou de retidão moral. É algo mais inusitado, mais ambíguo e, por isso mesmo, mais próximo da realidade. Getúlio Santos Bezerra é o protagonista desta “história de aretê”, como avisa o próprio Ubaldo logo na epígrafe que emoldura a história do livro e dá também o seu significado; ele tem de levar um prisioneiro político da vila de Paulo Afonso até a cidade de Barra dos Coqueiros, do Sergipe à Bahia, e enfrentará alguns obstáculos pelo caminho. Fará isso a qualquer custo, porque ele, como bom militar, foi encarregado dessa tarefa e é seu dever cumpri-la, mesmo quando o chefe que o mandou resolve recuar por motivos políticos e manda a polícia persegui-lo para eliminar quaisquer suspeitas da sua decisão equivocada.
A aretê explicitada pelo romancista tem dois sentidos e ambos são encontrados na jornada de Getúlio: o primeiro significa a excelência em cumprir uma missão, não importa onde, não importa como, numa emulação dos feitos heroicos de personagens grandiloquentes, como o Aquiles da Ilíada, de Homero; e o segundo é parecido com o que não conhecemos mais – uma virtude interior, a plena consciência de seu valor num mundo brutal, inóspito, agreste. No início do romance, Getúlio é, sem dúvida, o primeiro tipo de aretê. Ubaldo consegue transmitir-nos essa sensibilidade bruta por meio de uma técnica literária sofisticada – o fluxo de consciência popularizado pelo modernismo europeu nas décadas de 1920 e 1930, em especial por James Joyce em Ulysses. Sabemos somente o que Getúlio sabe, mas podemos intuir por outras brechas o que acontece no mundo além do seu horizonte. Ao mesmo tempo, a linguagem usada por Ubaldo é também uma forma insólita de querer capturar tanto a realidade interior do personagem como a realidade que o circunda; é uma linguagem que se pretende totalizante e que, a partir da descrição de uma paisagem, também se refere a uma peculiar visão de mundo. Vejam, por exemplo, como isso é concretizado quando Getúlio narra o que acontece com a carne de um cadáver exposto ao ter seus nacos arrancados por um urubu:
Urubu é o asseio dos matos, enxerga no minuto que alguém deixa de andar naqueles agrestes e fica rodeando como um esprito. [...] É o dono do mundo. [...] O bicho estica para trás, arrasta pelo chão e engole com a cabeça para cima, tudo muito calado e despachado.
Há toda uma metafísica neste trecho, uma metafísica do caboclo. Aqui, a linguagem do romancista que quer apreender o real e a violência do personagem, como único meio de ver o mundo e de expressar sua vivência, fundem-se em um todo quase indistinguível. É claro que Ubaldo não aprova as ações extremas de Getúlio – as torturas que faz com os prisioneiros, o assassinato de sua ex-mulher por motivos de honra, ao não querer ser chamado de “corno” –, mas é difícil não perceber também que o escritor sente que a sua criação está prestes a escapar do seu controle e terá vida própria. Afinal, como diria o próprio Ubaldo ao relembrar um dos dez conselhos que seu pai, Manuel Ribeiro, lhe deu quando criança, uma das regras mais importantes que recebeu foi a de “não ser tutelado”, isto é, não aceitar que o convençam a fazer algo contra a sua vontade, a fazer algo que impeça a excelência de realizar a sua missão. Ora, eis aqui o dilema de Getúlio Santos Bezerra: ou se rende à nova ordem de seu empregador ou cumpre o primeiro comando sem hesitar porque decide, antes de tudo, não ser mais um joguete da História.