#VivaPauloFrancis
Aos 95 anos do nascimento de Paulo Francis, leia, ou releia, o seu ensaio: “Os melhores anos de nossa vida” – Os sonhos, as lutas e as esperanças de uma geração
Inclassificável, debochado, polemista, provocador incansável, crítico feroz... muitos foram os adjetivos direcionados a Franz Paulo Trannin da Matta Heilborn.
Nascido em 2 de setembro de 1930, Paulo Francis não cabe num rótulo.
Entre os sinais de genialidade de um autor, poucos são tão claros quanto a capacidade de pensar com independência somada à disposição de sintonizar suas ideias com o rumo dos acontecimentos.
Mais do que qualquer adjetivo, é o texto de Francis que sustenta a sua presença. Aos 95 anos de seu nascimento, ele continua a existir nas palavras que deixou. No ensaio abaixo – longo, mas, garantimos, vale reservar um tempo para ler com atenção –, ele mostra o olhar direto, honesto, e até afetuoso, com o qual tentava entender o Brasil.
Francis encerra seu ensaio com uma imagem que soa profética: a tumba cultural que foi fechada nos anos 60 voltaria a se mover. Nostalgia pode não ser a “nossa chávena”, mas isso não nos impede de pensar como seria bom um Francis para dar forma aos acontecimentos desse nosso confuso país.
OS MELHORES ANOS DE NOSSA VIDA
Os sonhos, as lutas e as esperanças de uma geração
Paulo Francis
Nostalgia não é definitivamente minha chávena de chá, minha bag, ou meu barato. As três imagens, inglesa, americana (a bag, saco, é de heroína) e brasileira, me parecem caracterizar à perfeição as respectivas identidades nacionais. Fechado o parentese, declaro que nem me lembro de metade das pessoas a quem cumprimento, tão rápido esqueço o que passou. Não ficaram ódios ou amores encravados. Meu tempo é o presente. O futuro é mais negro que a asa da graúna.
Freud deu respeitabilidade à nostalgia. Devia saber, no entanto, que todo mundo é imbecil até os trinta anos de idade, mais ou menos, porque nosso organismo, enquanto não decai, mantém esperanças absurdas de puissance absoluta ou de durabilidade, que resistem à análise, não importa o que a gente diga, para se fazer de amadurecido. Confesso que antes dos trinta não me ocorria, no duro, que eu fosse morrer. Hoje, sei e só espero que seja súbito e indolor, um apagar das luzes em curto-circuito.
As impressões de infância são profundas porque caem num vazio. Dispõem de todo nosso espaço para se tornarem indeléveis. Freud atribuiu a esse fenômeno valores que me parecem injustificados. Lembrem-se de que o calor único de mamãe compensava uma total estupidez e incompreensão nossas, um medo animal do desconhecido e a falta do que fazer, literal e figurativamente. O homem (mulher também, feministas) neolítico sentia animicamente a natureza com uma intensidade que não podemos começar a imaginar, nós que, no ginásio, aprendemos a estrutura das coisas. E daí?
Alguém pretende que o tacape seja superior à tabuada? O melhor exemplo disso é que até o ruim vira madeleine proustiana. Detesto e sempre detestei doce de laranja. Provei um outro dia e a bundinha cá em cima abriu em leque de recordações. O troço é físico, não é conceitual.
Ainda assim. Ainda assim, ponto, revisor, que não se usa, você pensa, mas se usa sim, é uma sutil síntese estilística porque, por elipse, admite a imperfeição do conceito, reduzindo-o a proposição irracional, contra Sainte-Beuve e similares, escravos da lógica.
Ainda assim há periodos que nos parecem menos ruins que outros, e o motivo é sempre o mesmo: tínhamos esperanças, acreditávamos que esculpiriamos a bosta a ponto que o fedor ficasse secundário ao artefato. É sempre uma questão de ponto de vista, naturalmente. Cai-se de conhecer velhos na França que nos falam da douceur de la vie entre 1919-1939. E, no entanto, o pau quebrava nas ruas entre fascistas, monarquistas, comunistas e liberais quase todos esses anos. Fica subentendido, portanto.
Ser jovem, de classe média, no mínimo, não de todo burro, não aleijado, no Brasil entre 1955 e 1964 era, na mais conservadora hipótese, estar num subúrbio próximo de Canaã. Lá vou eu de novo. O que é o Brasil? Falo de Rio e São Paulo. Recife, na épоса, deveria ser a mesma que conheci em 1952 deve continuar idêntica, exceto pelos breves anos que o repulsivo Manuel Bandeira denegriu num poema sórdido, em que fazia um trocadilho infame com Arraes e arroz.
Mas, falando do meu terreiro, tudo parecia absurdamente possível. Cada qual no seu pique se sentia hercúleo. O Teatro de Arena falava português de rua. O TBC, depois de uma década de macaquices de Pirandello, Tennessee Williams etc., traduziu mesmo o B do meio para "Brasileiro". O Cinema Novo podia mamar em Godard mas descomia feijão com arroz. O Diário Carioca convertia "belonaves" em "aviões" (não subestimem a revolução cultural que isso é) e punha gente de perfil, sem falar de cavalos (e mulas disfarçadas), na primeira página. Tudo inédito. A revista Senhor respondia com Clarice Lispector, a nossa angústia viva ali, urbana, ao rigor mortis de Rachel de Queiroz. Mário Faustino mostrou que a geração de "45" era de 1645. Chico, o Caetano etc., cantavam conosco das coisas que a gente discutia na mesa do bar, em vez de idealizar favelas, vai viver lá se acha tão duca, meu chapa, luas cheias e outras miçanguices. Ferreira Gullar estava na Luta Corporal. O Brasil parecia entrar no século 20. Dei apenas uma amostra. Omiti, mea culpa, mea culpа.
Foi tudo um sonho e uma ilusão e pagamos até hoje por pensarmos que o arcaico, o ressentido, o bárbaro, o cruel, o reacionário, nos entregariam a rapadura numa simples batalha cultural. As armas deles são outras. E, justiça seja feita, sabem usá-las.
Não foi, em absoluto, um movimento de esquerda, lenda alimentada pela direita, como autojustificativa de salvar a civilização em que 10% come e 99% beliscam, if they are ever so fortunate, e também pela esquerda nostálgica. Tinha de tudo. De comum, havia o espírito de aventura, o horror sagrado e bendito ao retrógrado, ao acadêmico, ao acomodado.
Se é necessário achar uma caracterização política, eu diria que foi liberal, a douceur de la vie sob Juscelino Kubitschek (lembrem-se do que escrevi sobre a douceur de la vie, francesa, entre 1919-1939). Mas éramos burgueses e gloriosamente livres. E fomos generosos a ponto de perceber que a maioria esmagadora dos nossos patrícios não tinha, não tem, sequer consciência de que é humana, uma classe sem consciência de si própria, e lhes estendemos, à nossa maneira imperfeita, às vezes leviana, a mão. Mario Faustino, em 1962, depois de ter sido o homem que modernizou intelectualmente a poesia brasileira, só conseguia escrever editoriais pedindo reformas. Mas é possivel, no Brasil, não ser, no mínimo, liberal? Olha em volta. Se queres um monumento, olha em torno. Não há arranha-céu tão alto que torne "eles” invisíveis. "Eles" permeavam tudo que fazíamos. É um bom legado de consciência. O nosso único, aliás, de fracassados e derrotados.
Juscelino animou todo mundo. Eu votei nele não porque acreditasse no que prоpunha eu era trotskista, com muita honra, e nos meus sonhos, em geral regados de Black Label, relegava legiões de políticos brasileiros à lixeira da História. Escolhi o "mal menor" (há outra opção em política? Desconheço, nos meus 45 anos). Mas, hoje, "no contexto", reconheço a injustiça dessa análise. Caio Prado Júnior me convenceu plenamente que pagamos um preço absurdo pela indústria automobilística e Brasília é apenas uma arapuca burocrática, mas a indústria, essa, tornou irreversível a industrialização do Brasil, menos pelo que é em si do que pelo seu simbolismo abrangente. E é correto que se abra o centro no Brasil, ainda que em mausoléu.
A injustiça é que não é possivel a emergência de um Glauber Rocha sem que um JK fertilize o solo. JK não queria arrancar tuas unhas porque você era de esquerda. Te recebia com o mesmo sorriso, embora te achasse ingênuo. Esse clima liberal permitiu que "mil flores florescessem".
Não que fosse tudo harmonia. Poucos colaboradores da revista Senhor sabiam que quebrava o pau entre mim e meu velho amigo Carlos Scliar, por motivos políticos bem mais sérios do que os discutidos na Câmara em Brasília (apesar de nossa falta de poder). Não tem importância. Isso é saudável. A luta existia em todos os movimentos artísticos intelectuais. Até os ininteligíveis senhores do ISEB, ao contrário da lenda, discordavam violentamente. O denominador cоmum, porém, valia mais, devassando as teias de aranha, expondo os morcegos à luz solar, espetando, figurativamente, estacas nos corações de vampiro.
A transição mais dificil, para mim, ao menos, foi do universal ao nacional. É fácil precisar o momento em que me vi no espelho, warts and all, espinhas e mazelas, e dizendo enfim, é isso aí: a estréia de A Compadecida, de Ariano Suassuna, primeira versão, no Teatro Dulcina, por um grupo de amadores de Pernambuco. Eu passava a maior parte do meu tempo como crítico de teatro reclamando que os autores brasileiros não tinham o intelecto de Bernard Shaw e que os atores faziam lordes ingleses com meias soquetes fantasia e sotaques cearenses, sem falar daquela cor de pele e cabelo que, como dizem, não nega.
Pois esses amadores eram nordestinos mesmo, se gabavam disso, improvisavam sobre essa condição, exultavam, criavam, imitavam aristotelicamente a realidade que nos iludia, pois tentávamos expressá-la em traduções, maneiras e costumes que só podíamos conhecer de orelhada. Suassuna é católico, ou era, e, elaro, não conseguia sair do romance da burguesia (que é infinito e, no Brasil, irrelevante), mas o espetáculo, como diria Brutus D. G. Pedreira, tinha quatro pares de "suportes atléticos".
O palco parecia explodir e a platéia (de críticos) também. As escamas caíam adoidadas de nossos olhos. Foi um começo geral que dominou o teatro no Rio e São Paulo, rapidamente, a ponto de que parecia não haver outra coisa nos palcos (uma ilusão, naturalmente). Uma estréia do Teatro de Arena lembrava, se é possivel pensar atavicamente, Eurípedes massacrando a Guerra do Peloponeso, ou a riqueza emocional que Shaw notou, em 1900!!!, transferida do teatro, seu lugar de direito, para os serviços religiosos.
Teatro me parecia extraordinariamente importante porque era meu métier, logo, em boa parte, o que conto é reflexo da minha vaidade. Mas até certo ponto só. O espírito predominante – o que estarrecerá os jovens de hoje – é que éramos capazes de tudo que quiséssemos e em que nos empenhássemos. Quando Jânio de Freitas reformulou o Jornal do Brasil, ou Reynaldo Jardim o Caderno Dominical do dito-cujo, ou Nahum Sirotsky criou a revista Senhor, a idéia não era superar os produtos similares, que nem entravam em cogitação. Era botar banca no mundo, de maneira original, pessoal, e intransferível.
Vejam a diferença, no reino dos caranguejos. A Editora Abril tem muitos méritos, um dos quais elevar o padrão salarial dos jornalistas. No entanto, nunca produziu uma revista que não fosse cópia escarrada de publicação estrangeira. A idéia de que os excelentes profissionais de que a Editora dispõe e dispôs sejam capazes de gerar algo cosa nostra não entra na cabeça dos donos, que são criaturas do ethos político atual. Nos nossos tempos, era muito diferente, para dizer o mínimo. Não que fôssemos xenófobos. Na minha cabeça havia um lugar reservado para T. S. Eliot e outro para Gianfrancesco Guarnieri. Digamos que Eliot falava ao macaco mortal aqui, ao desfecho pressentido em whimpers e não em bangs. Lembra aquela história em que Malraux perguntou o que aconteceria numa sociedade socialista quando um bonde atropelasse uma criança, e o coro habitual respondeu que um motorneiro socialista não erraria. Nunca fui rinoceronte de lonesco, nem meus melhores amigos, apesar de alguns momentos de delírio (mea culpa, mea culpa. Prometi a Flávio Rangel, certa vez, uma cadeia longa, se bem que com todos os confortos americanos.).
Mas não consigo transmitir aos mais jovens o que era, por exemplo, ver uma estréia de Jorge Andrade, escavando a consciência da classe dirigente latifundiária, as descobertas, as identificações, os choques verbais de puro prazer, a descoberta do Brasil, que nada têm em comum com a versão oficial em que Cabral perdeu a tamanqueira. As pessoas polemizavam furiosamente. Uma estréia era sucedida de debates nos restaurantes e bares que terminavam na página escrita dos jornais. Tudo parecia importante porque não tínhamos certeza de nada, exceto da nossa vontade, obsessão, mesmo, de conhecer a realidade a que estávamos condicionados como brasileiros. Nenhum prazer de consumo cultural, que gozo hoje às pampas em Nova York, se compara a essa sensação.
O Brasil velho nos tocaiava discretamente. É tão podre que nos imaginava muito mais poderosos do que éramos, em verdade. JK agüentou o rojão. Uma análise do regime dele revela que, se, de um lado, liberalmente floresciam todas as tendências, de outro criara-se a mentalidade consumista, de parvenu, pequeno-burguesa. E um consumo em bases falsas, produto de uma superimposição industrial numa estrutura agrária do século 19 (o preço que JK pagou ao PSD), preso à infernal mecânica de empréstimos, auxílios e do "realismo"cambial. Meus contemporâneos se lembrarão de que os Gudins, Campos etc., sempre negaram a possibilidade de o Brasil se industrializar, até que a industrialização se tornou subproduto de multinacionais e condicionada aos interesses dos EUA em comércio externo, controle de patentes, alocação de tecnologia etc. Era impossível manter a engenhoca funcionando sem um acentuado perdularismo. Е, claro, isso dava margem aos retrógrados de pregar a moralidade administrativa que, logo, em aplicação demagógica, se converte em campanha contra a corrupção, como se a corrupção não fosse da essência do sistema capitalista, o que os EUA sempre demonstraram, escancaradamente, nem por isso perdendo a liderança mundial.
Nosso modesto fermento cultural, inteiramente à margem do poder real, incomodava porque servia de superestrutura das reivindicações das massas. Não que atingisse as massas. Era um troço de classe média, mas servia de pretexto a uma campanha contra, adivinharam, a infiltração comunista. Е соnexos: permissividade, desrespeito à família brasileira, pois falávamos que sexo é atividade natural e que divórcio e aborto são direitos em sociedades civilizadas. Mexíamos numa enorme casa de marimbondos. Insisto em que esse movimento cultural não era monopólio da esquerda (Jorge Andrade? Millôr Fernandes? Concretistas do Caderno Dominical?). Os próprios esquerdistas se dividiam em diversas facções, que brigavam mais entre si que contra a direita. O que havia, isto sim, era uma emergente consciência e, conseqüentemente, nacionalismo, que, uma vez concebido, se espraia a todos os setores, particularmente ao econômico.
A pressão aumentava e muitos de nós, inclusive, percebemos que o poder político precedia a liberdade cultural. Até hoje me fascina a rapidez com que passei de crítico de teatro e cultura, em geral, a colunista político diário, engagé e enragé. Mas como reagır em face do abominável Jânio Quadros, espocando clichês de moralidade de quitanda e artifícios de pai-de-santo?
A vassoura do dito deveria ter começado pela própria caspa. Sentiamos no ar a guiİhotina, havendo ainda alguma dúvida ingênua, em retrospecto, sobre que cabeças rolariam.
Lembro-me até hoje quando Jânio Quadros baixou a instrução 204 que estabeleceu o chamado "realismo cambial", ou seja, destruiu as defesas artificiais mas necessárias ao modesto e incipiente nacionalismo brasileiro. Um dia sombrio que muita gente não percebeu, pois a ignorância econômica dos nossos intelectuais não pode ser subestimada. O feitiço foi de tal ordem que até o feiticeiro se enrolou todo, endoidando à direita e à esquerda.
O resto foi anticlímax. A farsa da renúncia, o reaprumo acrobático e precário do populismo, causando um alívio momentâneo, logo definhando na incapacidade de compatibilizar slogan e atos, de manter sequer o nível e expectativas de consumo da década anterior, assustando e alienando a classe média, o radicalismo verbal que ficava bem em teatro e cinema, mas que, na vida real, deu o pretexto decisivo ao fechamento de tudo em nome de impedir a destruição da democracia e, em verdade, destruindo-a (o script não muda, ou o vestuário: Chile de Pinochet, a Argentina de Videla).
Não é meu tema aqui, nem é possível discuti-lo hoje em dia, como necessário. Quero lembrar apenas o período em que acordamos e nos imaginamos com direitos amplos e possibilidades infinitas.
Era bom e, até certo ponto, sólido. Afinal, de 1964 a 1968, enquanto o sarcófago não foi totalmente aparafusado, o movimento paradoxalmente se aguçou, chegando até, pela primeira vez, às ruas. E, se fechado, não morreu, ou foi substituído por outras correntes. O que há de novo, ou diferente, na praça? Nada. Onde está a cultura que tomasse o lugar da que esboçamos? O silêncio é ensurdecedor.
Detesto, repito, nostalgia, e não é minha intenção aqui glamourizar o período. Parece ser uma constante na nossa história esse ir e vir, a explosão do modernismo numa sociedade latifundiária, a literatura de protesto social prefaciando o Estado Novo e, no meu tempo, a descoberta de uma identidade nacional. Reparem, porém, nas diferenças. O modernismo foi essencialmente elitista, o que expressa, talvez, o desespero da parte mais consciente da classe dirigente em face da distância insuperável entre sensibilidade criadora e as massas. A literatura da década de 30 afirmou a existência do Brasil escravo, o seu primeiro e atrasado grito de independência, logo sufocado pelo Estado Novo. О nosso movimento inovou porque reuniu todos os fios da meada, do modernismo a Jorge Amado, digamos, procurando uma соmunalidade brasileira completa, de nação integrada. Sem querer ser muito otimista, há uma progressão e não uma involução.
O que me leva a crer, e é o máximo que ouso afirmar, que a tumba vai ser sacudida de novo.
Paulo Francis – uma coletânea de seus melhores textos já publicados. Editora Três.
Francis é o cromossomo original do NEIM que talvez tenha cruzado nas esquinas da vida com Diogo Mainardi (ou seria o Ênio?NEIM neim (Ughh) existiria se não tivesse havido um Paulo Francis.
Profético!