#VocêÉOQueCome
O que a escritora do melhor romance do século 21 (segundo o New York Times) tem a dizer sobre nossos hábitos alimentares?
::: O New York Times (tinha de ser) lançou uma lista dos 100 melhores livros do século XXI; no primeiro lugar está A Amiga Genial, da misteriosa Elena Ferrante. É um belo romance, mas a classificação está errada, até porque, ao ser o primeiro volume de uma tetralogia, o jornal americano esqueceu-se de lembrar ao leitor comum de que o melhor está por vir. Neste caso, no segundo volume do ciclo.
::: Porém, uma digressão para compreender a afirmação acima. É sempre bom relembrar que verdadeira obsessão de um escritor é a cena perfeita. E não pode ser qualquer cena. Ela deve ser, de preferência, algo que envolva comida, seja no sentido literal ou no metafórico (inclusive sexual, é claro), semelhante ao que Platão fez no Symposium. Mas como somos modernos, então vamos num exemplo moderno: a longa cena do jantar na casa de Seymour Levov, apelidado de O Sueco, famoso personagem do romance Pastoral Americana (1997), de Philip Roth. Ali, está tudo o que se pode esperar de um livro de Roth: as neuroses do sujeito que acaba de descobrir que a vida é nada mais que o caos; os pensamentos sem nenhuma coordenação de alguém que vê o outro à sua frente como uma máscara que ali apenas para enganá-lo; as idas e as voltas do narrador em terceira pessoa que não para de viajar no tempo (mas que, no fim das contas, é um Nathan Zuckerman que imagina o que teria acontecido com seu ídolo de infância); a inevitável cena em que se descobre (com uma boa dose de humor negro) o adultério da amada esposa – enfim, o pacote completo de virtuosismo literário que só o Bardo de Newark é capaz de nos proporcionar. Mas o que importa mesmo ali é o momento de suspense para o que será discutido no jantar: a inevitável queda das civilizações ocidentais, simbolizada pela América. Os Levovs tentaram manter uma vida perfeita, mas não conseguiram. Tentaram realizar a comunhão da sociedade por meio da comida, mas sequer conseguem mastigar o bocado que lhes resta. Tentaram ver uma unidade que jamais existiu. O jantar, no caso, serve apenas para comprovar que todos estamos cindidos; todos somos, como diria Montaigne, “duplos de nós mesmos” – e que não há concórdia possível, mesmo que você deseje isso com todas as suas forças.