#ACulturaDaDesconfiança
Nós vivemos em uma era de desconfiança, que é também uma era da traição.
Artistas e pensadores sempre refletiram em suas obras sobre as mais misérias da condição humana, nas tragédias gregas, nas peças shakespearianas, no cinema moderno. Mas hoje em dia vivemos a expectativa paranoica da traição e da desconfiança diariamente e em nossos momentos mais íntimos, em nossas jornadas profissionais e até espirituais: relacionamentos esvaziados de sentido, e escândalos envolvendo políticos ou líderes religiosos rompem qualquer laço comum de respeito, dedicação ou confiança.
Mais que isso: nossa cultura da desconfiança vai além das falhas individuais: desconfiamos mesmo do bom, do verdadeiro, e do belo. E sem isso, sem acreditarmos na própria integridade da nossa civilização - aquela que acredita que o errado pode ser corrigido, e de que a criatividade é um dom comunal - nem a arte, nem mesmo o nosso cotidiano trabalho, podem refletir uma visão transcendente, negamos mesmo aqui a possibilidade do eterno.
Como bem diz o artista plástico Makoto Fujimura, "a cultura da desconfiança nega o potencial da esperança, assim condenando-nos à autodestruição suicida."
Ao alimentarmos essa cultura, não percebemos que estamos a construir as condições mesmas para o desintegrar de nossos laços comunais. E desconfiamos especialmente da arte. Ao invés de buscarmos entender um trabalho artístico, nós o desprezamos e o tratamos como irrelevante, ou ainda pior: impomos um significado ideológico à arte e só assim a consideramos como útil, pois ela se torna afinal, propaganda.
E a cultura da desconfiança leva à cultura da reclamação e do vitimismo.
Ora se a arte e a cultura só têm função se carregadas de viés ideológico, isso significa que toda obra de arte será analisada através deste tipo de viés, onde só a arte que vale é aquela enraizada em uma dialética de relações de poder, que contrapõem amigos e inimigos, carrascos e vítimas, exploradores e explorados, moralismos e niilismos.
Nesta cultura, onde um artista nada mais é que um propagandista de uma ideologia, a sua obra nada mais será que uma peça de propaganda que deve carregar não algo que fale a todos, mas apenas a um grupo específico de iluminados.
Assim vemos que a arte passa a ser um simulacro de si mesma - e neste momento, críticos e público já não conseguem ser impactados pela arte, ao contrário, eles querem impor suas ideologias e suas pobres e rasteiras definições do que é arte, de qual é o sentido de uma obra artística. Isto é: uma obra de arte só tem valor se corresponder a determinados filtros ideológicos pré-concebidos e não pela sua própria força e apuro estéticos e significado intrínsecos.
Hoje as pessoas olham a arte com ceticismo, com desconfiança, queremos apontar dedos acusadores para suas inconsistências, ambiguidades, parcialidades, omissões e jogos de poder.
Tal atitude termina por gerar um circuito vicioso, onde para ganhar espaço, um artista irá construir uma obra que nasce não de integridade estética, não de dramas universais e humanos, não de um diálogo com o transcendente; ao contrário, irá este artista usar seu talento para fazer uma obra que nada mais busca além de apontar o dedo para o outro, sendo este outro o carrasco, e o artista irá olhar para si - ou para seu grupo de eleitos - como a vítima imaculada, prenhe de ressentimento "justo", obras que são didáticas, puritanas, “transparentes e lisas”, sem atrito, onde não há confronto, desconforto, tensão, sombras.
Obviamente este tipo de cultura de desconfiança gera uma sociedade em que todos apontam os dedos para todos, em que todos se colocam como vítimas e ninguém é responsável pelas próprias escolhas - e pecados -, sendo a prática aqui não mais de um diálogo humanista, mas de um alucinado e paranoico denuncismo generalizado, desumanizado.
Obras e artistas são neste momento acusados de serem racistas, chauvinistas, homofóbicos e fascistas pelos críticos à esquerda; à direita vemos acusações de que artistas não passam de pornógrafos, gayzistas, niilistas e comunistas. De um lado só aceitam uma arte que se faz transgressora, vanguardista, revolucionária, de outro, aqueles que só aceitam uma arte moralista, esteticista, reacionária. No cerne de tudo o que se busca de um lado e de outro é o silenciar do que não agrada, do que é incomodo, do que não é correto. No fundo, os dois lados querem somente a censura do outro, de preferência uma censura que seja definitiva.
E a única forma de escapar deste pesadelo paranoico e sufocante é buscarmos uma educação pessoal que se volte para a arte e que a respeite para além de suas mensagens políticas e sociais, uma educação pessoal que busque a comunhão e a contemplação - não apenas público e crítica deve se auto educar, mas também e especialmente os artistas em seu labor - e assim criar o hábito, construir um espaço onde possamos enxergar aquilo que ela - a Arte - representa: a possibilidade de um diálogo que transcenda nossa existência e nossas tragédias, nossas particularidades e bolhas ideológicas, e que nos possibilite vislumbrar a vida para além de nosso tempo.
"No fundo, os dois lados querem somente a censura do outro, de preferência uma censura que seja definitiva."
Penso que há vida entre os dois lados. Há pensamentos e histórias que fogem dessa lógica. São poucos, como sempre foram os autores preocupados com a totalidade, ou a universalidade. Sócrates criticava os misólogos, Cícero denunciava os cirenaicos e tantos outros grandes autores enfrentavam sem medo a turba barulhenta que só consegue enxergar a espuma das ondas no mar. Entre uma tempestade e outra a gente se ilude que isso vai mudar. Por isso, acho que o ceticismo é fundamental, principalmente durante a tempestade...
O último texto do João Pereira Coutinho na folha é mais ou menos sobre isso...
"Obras e artistas são neste momento acusados de serem racistas, chauvinistas, homofóbicos e fascistas pelos críticos à esquerda; à direita vemos acusações de que artistas não passam de pornógrafos, gayzistas, niilistas e comunistas. De um lado só aceitam uma arte que se faz transgressora, vanguardista, revolucionária, de outro, aqueles que só aceitam uma arte moralista, esteticista, reacionária. No cerne de tudo o que se busca de um lado e de outro é o silenciar do que não agrada, do que é incomodo, do que não é correto. No fundo, os dois lados querem somente a censura do outro, de preferência uma censura que seja definitiva. " Perfeito.