#AGravidadeDasAlmas
As nossas formas de resistência interior não podem ser deformadas por uma elite corrompida.
Há uma “guerra cultural” no Brasil que pretende salvar a nossa verdadeira cultura, mas na verdade deseja destruí-la a qualquer custo. É o combate na nossa Ucrânia particular (por uma infeliz coincidência, o conflito na Ucrânia real faz dois anos hoje).
Isso também acontece no resto do mundo, especialmente nos EUA. Não à toa, Ted Gioia - um dos gurus do estagiário do NEIM - explica que o seu país enfrenta um elevado nível de polarização ideológica, chegando ao ponto de fraturar os vínculos afetivos entre as famílias. O mesmo acontece por aqui, sem dúvida.
Se há alguma solução, diz Gioia, não está mais na política ou na própria cultura em si, que se deixou contaminar pela lógica do mercado corporativista, naquilo que hoje chamamos de “macrocultura”. Ela se encontra na “microcultura”, nas comunidades, nos artesãos - e nos artistas que procuram, por meio de canções, poemas e filmes, salvar o mundo por pelo menos três minutos (já explicamos isso no NEIM, especialmente sobre o papel da Igreja Católica, mas os leitores deste site resolveram abordar somente questões paroquiais).
Recentemente, os EUA tiveram um vislumbre disso com o dueto entre a cantora progressista Tracy Chapman e o cantor redneck Luke Combs, durante o Grammy. Ali, duas esferas da sociedade americana se uniram para enfim encontrar a harmonia perdida de um país que pode caminhar aos poucos para uma guerra civil:
No Brasil, houve algo semelhante na apresentação da cantora gospel Aymeê Rocha, durante o evento Dom Festival, uma espécie de The Voice evangélico. De forma discreta, coberta por uma bandeira do Brasil, ela cantou, com um dedilhado de violão que lembrou muito as primeiras canções de Leonard Cohen, uma versão de “Evangelho dos Fariseus”, um hino tradicional que foi atualizado sutilmente para dramatizar uma situação insustentável que ocorre neste país - a quadrilha de pedofilia e de tráfico infantil que há na ilha de Marajó (PA):
A atitude de Aymeê se explica por si mesma. Ela está ali para fazer música, e não para praticar propaganda religiosa ou política. Sua canção toca “o coração do problema” sem nenhum sentimentalismo kitsch (ao contrário da reação do júri do festival, completamente intoxicado por um exibicionismo moral de dar engulhos). Por três minutos, Aymeê transcendeu toda a nossa miséria nacional - algo que só a grande arte pode realizar (e espero sinceramente que ela não permita ser instrumentalizada pela manifestação bolsonarista prevista para ocorrer neste domingo).
Enquanto tudo isso acontecia no continente americano, o russo Alexei Navalny, um jornalista polêmico que usava da arte dos memes e dos documentários para mostrar a insanidade que é viver sob a tirania de Vladimir Putin, foi assassinado num gulag, provavelmente por um murro mortal dado no peito enquanto era congelado em pleno Ártico. Ele foi preso porque voltou do seu exílio europeu (depois de quase morrer envenenado pela FSB, a ex-KGB), numa clara afronta a Putin. A acusação contra Navalny foi de que era um “traidor” (sinônimo de “dissidente”).
Imediatamente, a imprensa ocidental escreveu inúmeros obituários, contra e a favor de Navalny. Uns mostravam como o seu passado o condenava (de fato, ele tinha simpatias nazistas no início da carreira); outros exibiam suas virtudes (como a coragem e o senso de humor). Aqui, no Brasil, a revista Piauí, por via de Jerônimo Teixeira, faz aquilo que a elite tupiniquim pensa que faz de melhor: estetizar a situação, ao chamá-la de trágica, recheando-a de referências eruditas tipicamente europeias (e que não têm nada a ver com a cultura russa peculiar da qual Navalny fazia parte), o que deforma por completo a verdadeira luta pela liberdade que estava em jogo com as atitudes subversivas do jornalista dissidente.
A história de Navalny não é trágica, apesar do seu assassinato, porque o seu fim foi o ápice de um combate particular que ele viveu no seu espaço mais íntimo. Ninguém tem uma concepção clara do que é a liberdade; ela se constrói conforme vivemos, entre trancos e barrancos. Quem falar o contrário, simplesmente está mentindo para si mesmo. A princípio, pensamos que a liberdade é um direito, o que é um erro. Ela, na verdade, é uma conquista - e, no caso de Navalny, ele alcançou isso por meio de muita dor e muito sofrimento. Mas, quando a hora chegou, sem dúvida o jornalista sabia, no seu coração, que era um homem livre, despido de todos os erros anteriores que cometeu.
Isso é provado na correspondência de Navalny com outro dissidente, Nathan Sharansky, um cientista judeu que também ficou preso no gulag por nove anos, igualmente por “alta traição”, mas depois conseguiu sair graças aos protestos da comunidade internacional e hoje mora em Jerusalém. A troca de cartas foi publicada pelo site The Free Press e mostra como a escrita entre esses dois personagens foi importante para que Navalny, mesmo estando numa prisão, entendesse que a liberdade interior é superior a qualquer tipo de liberdade exterior (em geral, a única a ser defendida pelas nossas instituições democráticas).
Em um dos trechos, Sharansky explica como é difícil para os outros ocidentais entenderem o porque de Navalny ter voltado à Rússia, depois de tudo o que passou:
“Alexey, você não é apenas um dissidente - você é um dissidente com ‘estilo’! Meu horror sobre seu envenenamento se transformou em admiração quando você iniciou sua investigação independente.
Fiquei furioso quando um jornalista europeu me perguntou qual seria o motivo do seu retorno à Rússia. “Por que ele voltou? Todo mundo sabia que ele seria preso. Ele não entende essas coisas óbvias?” Minha resposta foi claramente grosseira: “É você que não está entendendo nada. Se você acredita que a meta dele [Navalny] é a sobrevivência - então está certíssimo. Mas a verdadeira preocupação dele é o destino do seu povo - e ele está afirmando o seguinte para os russos: ‘Eu não tenho medo - e vocês não deveriam ter também’”.
Desejo-lhe acima de tudo - por mais difícil que isto seja fisicamente - que você mantenha a sua liberdade interior.
Quando eu estava na prisão, descobri que, além da lei universal da gravidade das partículas, há também a lei universal da gravidade das almas. Ao permanecer como um homem livre na prisão, Alexei, você também influencia as almas de milhões de pessoas por todo o mundo”. [grifos nossos]
Alexey Navalny e Aymeê Rocha provam, com seus exemplos, que podem mudar a gravidade das almas, ao elevá-las sempre para o firmamento. E mais: ambos são artistas da sobrevivência em países cujas elites já se encontram no poço mais profundo do inferno (literal e metafórico). Quem não entender a importância disso, e perceber como essas duas formas de resistência estão conectadas, apesar da distância geográfica e cultural, já abandonou a sua humanidade há muito tempo.
Quanto mais opressor é o ambiente mais se pode distinguir a liberdade. Boécio, preso injustamente, escreveu a Consolação da Filosofia enquanto sofria torturas. Navalny estava no gulag, mas não era o gulag...
O fato do primeiro vídeo em questão fazer parte do Grammy já é algo que abre uma perspectiva questionável sobre essa ideia de “colocar as diferenças à parte”. Afinal , essa premiação tem um longo histórico de contribuição para o que de pior a arte americana tem produzido, além de seu óbvio compromisso com a agenda woke.
Ainda assim é possível a fruição da belíssima canção, bem como do dueto aparentemente tão bem intencionado.
Agora, diante da cara patética de choro coreografado dos jurados do segundo vídeo, honestamente , não há como segurar a ânsia de vômito. Até porque, ao encenar/enquadrar sua dor, que parecia mais endereçada para a câmera do que para qualquer vítima, os jurados estão justamente tentando manipular uma das coisas que nos torna humanos: os sentimentos de dor sincera pela dor do outro.