O fato mais importante da semana não é o chabu do Irã contra Israel; ou o fracasso fiscal de Lula e Haddad; ou o mapa do IBGE que coloca o Brasil no centro do mundo, segundo os delírios de Marcio Pochmann; ou o afastamento da juíza Gabriela Hardt porque o status quo a puniu por ter condenado o nosso presidente da República lá no distante ano de 2018 (alguém se lembra disso?).
O fato mais importante da semana é o atentado terrorista que ocorreu ontem em Sydney, na Austrália.
Isso mesmo. Na Austrália. Não foi em Londres, Nova York, Paris ou Berlim. Foi na Austrália.
Para o brasileiro que só conhece a Austrália porque viu Crocodilo Dundee na Tela Quente da Globo, assistiu aos primeiros filmes de Peter Weir, ainda sabe quem foi Mel Gibson e foi comer no Outback, aí vai um aviso: a Austrália também tem igrejas ortodoxas. Não por acaso, foi onde ocorreu o ataque de ontem à noite.
Sim, você leu corretamente, de novo. O atentado não atingiu os judeus, os católicos, os muçulmanos, os ciganos - enfim, os suspeitos de sempre. Atingiu uma igreja suburbana ortodoxa cristã.
O terrorista feriu quatro pessoas, inclusive o bispo Mar Mari Emmanuel, conhecido por ser o popular Bispo do Tik Tok naquelas planícies.
O autor do evento macabro foi um jovem de quinze anos de idade, que disse as seguintes palavras em árabe: “Se ele [o bispo] não tivesse insultado o meu profeta, eu não estaria aqui. Se ele não tivesse se metido com a minha religião, eu não iria até aqui”. Qual foi o insulto, ninguém sabe.
Segundo testemunhas, o jovem estava de capuz, se aproximou do altar da igreja e esfaqueou o sacerdote. Quem estava ali só sabia gritar de pavor. (As imagens contidas neste link são chocantes)
(Por uma coincidência macabra, é o mesmo modus operandi do jihadista que tentou matar Salman Rushdie em 2022, ao querer cumprir a fatwa determinada pelo Irã.)
No dia anterior, na mesma cidade de Sydney, um outro indivíduo, agora um homem de 40 anos que antes era um michê, esfaqueou uma mãe e seu bebê no meio de um shopping center (a mãe morreu; o bebê continua no hospital). A polícia interveio e matou o vagabundo a balas. Ele não falou nenhuma palavra de árabe.
(O estagiário do NEIM aposta que os especialistas em extremismo que pululam no chorume do Twitter ficaram fulos porque os dois eventos não tinham como ser catalogados no gênero “alt-right”)
Contudo, hoje, na Folha de São Paulo, o melhor colunista da imprensa brasileira, o português João Pereira Coutinho, escreveu um texto impecável sobre como a jihad apocalíptica orienta as ações do Irã contra Israel. E afirma algo que o chefe do estagiário do NEIM diz há anos: ninguém consegue entender o mundo moderno se você não compreende o verdadeiro significado do que é o Apocalipse.
(Neste sentido, o duelo carnavalesco entre Baby do Brasil e Ivete Sangalo foi apenas o prenúncio do que estamos vivendo agora. Obviamente, quem se lembra disso? Ninguém.)
Porém, a jihad, a guerra santa, não é restrita apenas aos islâmicos radicais. Ela se espalhou por todo o Ocidente. Todos nós estamos vivendo as nossas jihads particulares, e cada uma delas tem um Mahdi (salvador) que julga nos controlar para todo o sempre.
(É interessante observar que o texto de hoje de JPC saiu duas semanas depois da série de ensaios escrita por Dionisius Amêndola para o NEIM, a respeito da saga Duna, na qual a jihad é tema fundamental para a compreensão da obra de Frank Herbert e dos filmes arrasa-quarteirão de Denis Villeneuve. Great minds think alike)
Aqui, no Brasil, enfrentamos Lula, Bolsonaro, o STF, os bolsonaristas, os petistas, os assaltantes de rua, os ladrões de banco e os chutadores de serviço. É jihad a cada minuto e a cada segundo. Não à toa, estamos doidos para chamar um Nayib Bukele de nosso.
E não temos nenhum Mahdi para nos salvar porque estamos completamente abandonados.
Nós somos o bispo ortodoxo que foi esfaqueado no meio da cerimônia; nós somos a mãe que tentou proteger o seu bebê da facada do michê psicopata. Sydney é aqui. O Brasil é também lá.
Na guerra santa que cada um merece, ninguém mais é inocente e o mundo inteiro se transformou em um imenso pandemônio.
Quem viver verá.
João Pereira Coutinho na Folha de São Paulo em 15/04/24:
Podemos não estar interessados no Apocalipse, mas ele está interessado em nós
Só o humor nos salva. A TV está ligada, o ataque do Irã a Israel vai rolando na tela. E eu rio com uma entrevista de John Jenkins, antigo diplomata britânico no Oriente Médio, à revista "New Statesman".
Diz ele, com inteira razão, que o mundo ocidental perdeu a capacidade de entender o universo simbólico e religioso da elite teocrática iraniana. E, como
exemplo, contou uma conversa que teve, anos atrás, com um conselheiro iraquiano em Bagdá.
Alguém contara a Jenkins que o então presidente iraniano Mahmoud
Ahmadinejad deixava sempre uma cadeira vazia nas suas reuniões de governo.
Para quem? Para o 12° imã do xiismo, que desapareceu no século 9o
○ conselheiro iraquiano, confrontado com o bom humor de Jenkins, perguntou-lhe se ele não acreditava no regresso do "imä
oculto". Jenkins respondeu que, como católico, também aceitava o fim dos tempos. Mas duvidava que o "imă oculto" (o Mahdi) fizesse a sua aparição numa reunião de governo
Que tem essa história a ver com o ataque em curso?
Tudo, embora eu entenda a perplexidade da pergunta. Nos textos correntes sobre o
conflito israelense-palestino, cometem-se dois erros que só atrapalham
○ primeiro é acreditar que ainda existe um conflito israelense-palestino. Não existe. 0
conflito é israelense-iraniano há, pelo menos, duas décadas.
○ segundo equívoco decorre do primeiro: ○ regime teocrático, usando "proxies" (Hamas, Hezbollah etc.) ou inaugurando
hostilidades diretas, combate Israel para destruí-lo, não para garantir a solução dos "dois Estados". Mas por que motivo Teerä quer destruir Israel?
Sim, haverá razões geoestratégicas (e bem pragmáticas) que lidam com a ambição do Irå em ser a grande potência regional no Oriente Médio
Mas parte da resposta está também na cadeira vazia que Ahmadinejad gostava de ter nas suas reuniðes. Na reinterpretação
que os aiatolás Ruhollah Khomeini e Ali Khamenei fizeram da tradição messiânica do xiismo desde 1979, é preciso preparar o regresso do Mahdi.
E, para isso, é imperioso remover os
"obstáculos" que existem no seu caminho. Israel é o maior deles.
Essa história, que não casa bem com nosso secularismo iluminado, está bem contada no ensaio que Saeid Golkar e Kasra Aarabi publicaram no Middle East
Institute em 2022: "Iran's Revolutionary Guard and the Rising Cult of Mahdism: Missiles and Militias for the Apocalypse"
Aconselho vivamente.
Explicam os autores que,
tradicionalmente, o retorno do "imă
oculto", juntamente com seus 313
soldados para vencer o mal numa batalha apocalítica, implicava uma preparação religiosa e espiritual para os seus seguidores.
Com a revolução iraniana de 1979, o
aiatolá Khomeini introduz uma cisão
nesse "quietismo xiita". A preparação é também política, desde logo pela instauração de um governo islâmico e de uma guarda revolucionária capaz de velar
pelos valores da revolução
Mas é sobretudo com Ali Khamenei,
sucessor de Khomeini como "líder
supremo", que o "mahdismo" se converte na lente principal do regime para entender o país e o mundo.
Contam Golkar e Aarabi que, em 1997, com a vitória do "reformista" Mohammad Khatami nas eleições presidenciais, Khamenei fica alarmado com o fato de 73% dos membros da Guarda Revolucionária Iraniana terem votado no
"reformismo".
O que veio a seguir foi terapia de choque na formação das novas gerações de guardas revolucionários. A defesa da
teocracia e a necessidade de exportar a revolução islâmica no Oriente Médio continuaram sendo os pilares essenciais do regime.
Mas a dimensão escatológica do
mahdismo passou a orientar as opções geoestratégicas do Irã na luta contra "o sionismo, 0 sionismo wahabista e o sionismo cristão"
Ou, traduzindo em linguagem menos cifrada, contra Israel, os sunitas e os Estados Unidos. Não haverá redenção da humanidade com esses demônios no caminho.
Na entrevista, John Jenkins termina com uma paráfrase trotskista: o fato de não estarmos interessados no Oriente Médio não significa que o Oriente Médio não está
interessado em nós.
É uma boa frase, embora eu prefira outra: o fato de não estarmos interessados no apocalipse não significa que o apocalipse não está interessado em nós.
Enquanto o mundo não digerir essa
verdade inconveniente, qualquer análise sobre a guerra naquelas bandas estará incompleta.
👇
Parece mesmo a antessala do apocalipse, e não vai precisar de um Armagedom, a raça humana vai se aniquilar sozinha.
Obrigada pelo texto magnífico.