O estagiário do NEIM viu as imagens do show da Madonna. Teve simulação de cunnilingus entre a cantora e Anitta. Teve encoxada explícita que Pablo Vittar deu em La Ciccone. Tudo isso pago com dinheiro do bolso suado do brasileiro. Obviamente, essas cenas foram elogiadas pela imprensa como “expressão da liberdade”. Mas daí ele lembrou-se das cenas trágicas no Rio Grande do Sul. E veio-lhe o seguinte pensamento:
“Assim as cidades começam a ser abaladas pelas revoluções, e as que são atingidas por estas mais tarde, conhecendo os acontecimentos anteriores, chegam a extravagâncias ainda maiores em iniciativas de uma engenhosidade rara e em represálias nunca antes imaginadas. A significação normal das palavras em relação aos atos muda segundo os caprichos dos homens. A audácia irracional passa a ser considerada lealdade corajosa em relação ao partido; a hesitação prudente se torna covardia dissimulada; a moderação passa a ser uma máscara para a fraqueza covarde, e agir inteligentemente equivale à inércia total. Os impulsos precipitados são vistos como uma virtude viril, mas a prudência no deliberar é um pretexto para a omissão. O homem irascível sempre merece confiança, e seu oposto se torna suspeito. O conspirador bem-sucedido é inteligente, e ainda mais aquele que o descobre, mas quem não aprova esses procedimentos é tido como traidor do partido e um covarde diante dos adversários. Em suma, ser o primeiro nessa corrida para o mal e compelir a entrar nela quem não queria é motivo de elogios. Na realidade, os laços de parentesco ficam mais fracos que os de partido, no qual os homens se dispõem mais decididamente a tudo ousar sem perda de tempo, pois tais associações não se constituem para o bem público respeitando as leis existentes, mas para violarem a ordem estabelecida ao sabor da ambição. Os compromissos tiram a sua validade menos de sua força de lei divina que da ilegalidade perpetrada em comum. Palavras sensatas ditas por adversários são recebidas, se estes prevalecem, com desconfiança vigilante ao invés de generosidade. Vingar-se de uma ofensa é mais apreciado que não haver sido ofendido. Os juramentos de reconciliação só têm valor no momento em que são feitos, pois cada lado só se compromete para fazer face a uma emergência, não tendo a mínima força, e aquele que, em qualquer ocasião, vendo um adversário desprevenido, é o primeiro a se atrever, acha sua vingança mais agradável por causa do compromisso rompido do que se atacasse abertamente, levando em conta não somente a segurança de tal procedimento, mas também a circunstância de, por vencer mediante falsidade, estar fazendo jus a elogios por sua astúcia. De um modo geral os homens passam a achar melhor ser chamados canalhas astuciosos que tolos honestos, envergonhando-se no segundo caso e orgulhando-se no primeiro.
A causa de todos esses males era a ânsia de chegar ao poder por cupidez e ambição, pois destas nasce o radicalismo dos que se entregam ao facciosismo partidário. Com efeito, os líderes partidários emergentes nas várias cidades, usando em ambas as facções palavras especiosas (uns falavam em igualdade política para as massas, outros em aristocracia moderada), procuravam dar a impressão de servir aos interesses da cidade, mas na realidade serviam-se dela; valendo-se de todos os meios para impor-se uns aos outros, todos ousavam praticar os atos mais terríveis, e executavam vinganças ainda piores, não nos limites da justiça e do interesse público, mas pautando a sua conduta, em ambos os partidos, pelos caprichos do momento; sempre estavam prontos, seja ditando sentenças injustas de condenação, seja subindo ao poder pela violência, a agir em função de suas rivalidades imediatas. Consequentemente, ninguém tinha o menor apreço pela verdadeira piedade, e aqueles capazes de levar a bom termo um plano odioso sob o manto de palavras enganosas eram considerados os melhores, e os cidadãos que não pertenciam a um dos dois partidos eram eliminados por ambos, por não fazerem causa comum com eles ou simplesmente pelo despeito de vê-los sobreviver.”
Obviamente, o trecho não é do estagiário. É de Tucídides (mais especificamente, o Livro III da História da Guerra do Peloponeso, tradução de Mario da Gama Kury). Mas o que aconteceu na Atenas daquela época é o que também acontece no Brasil e, com certeza, no resto do mundo.
A natureza humana, apesar de todo o nosso progresso, nunca muda. Quando muda, geralmente é para o pior. E o que acontece de bom com ela nunca é por mérito próprio.
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Já mudaram a manchete de topo de página do UOL. Porém quando li, era bem essa crítica ao contraste com a tragédia gaúcha, afora a afronta ao senso comum brasileiro. Uma coisa é entretenimento. Faz parte da vida. Outra é o descaso com a solidariedade em união orgiástica com a perversidade. Não se trata de um moralismo retrógrado, mas essas múltiplas associações de patrocínio, vips (endinheirados ou poderosos), artistas e imprensa, todos em aplauso, revelam muito do nosso descaminho como Sociedade.
O show da Madonna é uma espécie de baile da ilha fiscal para as massas. Ou um pagode na laje para vips. Remete ao que fomos e resume o que somos.