Meu sobrinho Luís Felipe passou vinte dias em Salvador, segundo ele, a trabalho.
Antes de embarcar, telefonou-me para perguntar se poderia vir ao meu apartamento para se despedir e me pedir um pequeno favor.
Chegou acompanhando de Tristram Shandy, um filhote da raça Beagle, assim batizado em homenagem ao divertido romance de Laurence Sterne.
Sabendo da viagem e vendo o cão, intui o favor. Assumi sem protestar o encargo de depositário de Tristram.
Tomamos café, fumamos charutos e o acompanhei até a garagem para pegar os equipamentos necessários ao conforto do cão: uma cama, dois recipientes, sendo um para água e outro para ração, um conjunto de tapetes higiênicos, um brinquedo de roer e um saco de ração.
Perguntei sobre a coleira e soube que o cão não havia, ainda, tomado todas as vacinas, pelo que era melhor que não saísse.
Embora de nariz torcido, Dona Antonina da Silva – a senhora que cuida de minhas roupas e da minha alimentação – auxiliou-me a organizar a hospedagem de Tristram, o que fizemos na varanda.
Certificamo-nos de que estava tudo bem protegido contra as intempéries e contra a possibilidade de o hóspede, desconhecendo a lei da gravidade, despencar do nono andar.
O cão seguiu-me a tarde toda. Não saiu de perto de mim nem por um minuto e, quando não permiti que me acompanhasse no banheiro, chorou como se estivesse a ser torturado.
Chegada a noite, jantamos. Eu, frango e salada; ele, ração e uma porção do meu frango. Coloquei-o na confortável cama que armei na varanda e me despedi.
O choro de Tristram foi tão imediato, sentido e intenso que não pude ignorar. Percebi que ele queria dormir na minha cama, mas isso estava fora de cogitação. Fiquei no sofá da sala e ele ao pé de mim. Adormeci no sofá e, quando acordei, vi que ele dormia em cima de mim e, consequentemente, do sofá.
Dona Antonina mal chegou ao apartamento e, ao constatar que Tristram já dominava o sofá, censurou o que ela chamou de minha permissividade excessiva.
Preparei o café enquanto Dona Antonina se arrumava para a faina diária. Ela e eu tomamos café; Tristram comeu a ração e o pé esquerdo do chinelo de Dona Antonina.
Na noite desse dia, armei a cama dele dentro de casa, ao pé do sofá. Quando ele dormiu, fui também dormir. A essa altura o leitor sabe que acordei com o Tristram confortavelmente deitado na minha cama. Ensaiei uma bronca que nunca tive intenção de dar.
Na manhã seguinte Dona Antonina chegou chamando por Tristram. Alimentou-o com ração e raspas de cenoura. A tarde foi à padaria e, sem me consultar, levou Tristram no colo, sob o argumento de que era importante que ele saísse.
Em uma semana, Tristram tomou conta da casa. A ração e a água foram colocados por Dona Antonina na cozinha para, segundo ela, “ele comer com a gente”. A cama, que ele só usa para a soneca da tarde, ficou na sala. Na varanda permaneceu apenas o tapete higiênico que, felizmente, ele usa como um cavalheiro.
Aproximaram-se os dias do retorno de Luís Felipe e, sem que nada disséssemos um ao outro, fomos, Dona Antonina e eu, ficando cada vez mais melancólicos.
Luís Felipe chegou em São Paulo durante a noite e veio almoçar comigo no dia seguinte. Dona Antonina recebeu-o com o Tristram no colo e, suspeito, discretas lágrimas nos olhos.
Tristram ignorou solenemente a presença do intruso e almoçou ao pé de mim. Luís Felipe agradeceu por termos cuidado do filhote e se desculpou pelo trabalho. Respondi com toda a sinceridade que não havia sido nenhum sacrifício. Até confessei que sentiria muita falta do hóspede.
Tomamos café e meu sobrinho foi trabalhar, dizendo que voltaria perto das dezenove horas para buscar Tristram. À sua saída, Dona Antonina e eu comemoramos as horas a mais que teríamos com o filhotinho.
A tarde Luís Felipe me ligou:
— Tio, é o seguinte. Apostei com minha mãe que o senhor ficaria feliz com um cachorro. Comprei o Tristram pensando em você, mas disposto a ficar com ele se o senhor não o quisesse. O que me diz?
O que digo? Digo que ele ganhou a aposta e eu e Dona Antonina ganhamos o Tristram.
Viva Tristam!
Que Putin, que Gilmar, que ... ?
Coisa maravilhosa ler essa pequena história! Quem tem cão em casa entende o poder dessas criaturinhas. Sempre bom alimentar a alma com coisas boas, bons sentimentos!