#ATorreEOPríncipe (2)
Os mistérios em torno de "O Leopardo", um dos maiores romances do século XX.
[Leia aqui a primeira parte do ensaio]
*Por Rodrigo Duarte Garcia
O Leopardo é um romance do gênero “história de família” e conta a história de Dom Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, no contexto do Risorgimento, a unificação italiana. A princípio, Lampedusa havia pensado o livro como o relato das vinte e quatro horas da vida do seu bisavô, no desembarque das tropas de Garibaldi em Marsala. Depois, reconhecendo que “não saberia fazer o Ulysses”, estruturou-o em três períodos, de maneira que acompanhamos a trajetória dos Salina entre 1860 e 1910, nesse testemunho impotente do declínio da aristocracia siciliana.
O Príncipe de Salina é um assombro: a personalidade forte – com todas as fraquezas inerentes – e o porte físico de uma liderança natural que dão contornos à sua aguda percepção dos acontecimentos e à resignação orgulhosa de quem vê o inevitável na estupidez de uma revolução que, como todas elas, quer simplesmente reinventar o mundo à base de abstrações conceituais. Ele procura o exílio solitário na companhia do cachorro Bendicò, em longas caçadas e na astronomia – o bisavô de Lampedusa fora o real descobridor de dois asteroides –, amargurado por não reconhecer nos filhos o próprio caráter. Mas enxerga-se em Tancredi, o sobrinho charmoso que adere à causa de Garibaldi e desaponta as esperanças apaixonadas de Concetta – sua filha sem-graça – para entregar-se à estonteante Angelica Sedàra. Há também Don Calogero – pai de Angelica –, enriquecendo rapidamente e ultrapassando a fortuna dos Salina, sem o menor gosto ou educação; e o espetacular Padre Pirrone, capelão jesuíta da família que observa o desenrolar das coisas, acuado com o anticlericalismo violento da revolução.
As mudanças vertiginosas e as escolhas morais diante da agitação social e política, a grandeza de algumas atitudes, a covardia de outras, os dramas pessoais da inevitável passagem do tempo e da presença insondável da morte a cada instante, tudo isso é construído por Lampedusa com a riqueza de cenas, paisagens e detalhes memoráveis, em um estilo límpido que, ao menos em tese, tinha Stendhal como modelo que ele adorava citar: “Meu ideal de estilo é aquele do Código Civil”, entendendo que a perfeição estética estava em “sugerir e evocar as paisagens e a atmosfera com toques sutis, sem quase nunca descrever”. Admirava grandemente a capacidade que escritores não-descritivos tinham de dar um “sentimento da paisagem” por meio de personagens e eventos, como a Escócia rural de Shakespeare em MacBeth, ou a frase que Tolstói entendia como o máximo da concisão para descrever o inverno russo: “uma ponte de madeira sobre um riacho congelado, cruzada por duas botas andando sozinhas”.