Há mais ou menos vinte e cinco anos, corto o meu cabelo e faço a minha barba semanalmente com o senhor Alceu Barbosa, que divide o ofício e o salão com seu filho Otávio, rapaz que conheci quando ele tinha uns oito ou nove anos.
Anteontem fui à barbearia e a vi fechada, com um bilhete afixado à porta no qual se lia: “Fechado por motivo de luto. Velório do barbeiro Alceu Barbosa, no cemitério [não me lembro bem do nome], na cidade de Capivari”.
Eu não chegaria a tempo para as exéquias, mas pude prestar-lhe minhas últimas – e únicas – homenagens, enviando-lhe uma coroa de flores em meu nome e de Paulo Fernandes, um meu amigo que também era freguês.
O senhor Alceu Barbosa estava sempre disposto e alegre; ele tinha a mania de, toda vez que cumprimentado, repetir Alceudispor, algo que fazia rir ao Paulo Fernandes e, não sei ao certo o porquê, trazia-me sutil irritação.
A única vez em que não sorriu foi a seguinte à morte de Maria Teresa, minha esposa. Marcou-me o fato de ele me receber solenemente, apertar minha mão e, com os olhos algo húmidos, dizer-me apenas que conhecia a dor da viuvez; não sei o que respondi, nem mesmo sei se respondi.
Ao logo do último um quarto de século, violei a sagrada cláusula de fidelidade que há entre um homem e seu barbeiro apenas duas vezes.
A primeira, durante uma viagem longa que Maria Teresa, minha saudosa esposa, e eu fizemos para a Itália; a segunda, no salão de um resort em que nos hospedamos Maria Teresa, eu, minha irmã, meu cunhado e meu sobrinho, Luís Felipe.
Nessa segunda e última infidelidade, fui vítima de uma barbeiragem que me obrigou a suprimir completamente minha barba, o que permitiu ao Luís Felipe, que era ainda criança, rir por uns dois dias.
Quanto ao senhor Alceu, ao saber a razão de encontrar-me imberbe, gabou-se de nunca ter errado minha barba e, como gostava de repetir, de nunca ter cortado ninguém, o que, cá entre nós, não é crível em se considerando os milhares de queixos que escanhoou.
Sentirei saudades do velho barbeiro e, a partir de agora, serei freguês do Otávio; a vacilante fidelidade que dediquei ao pai, entrego-a agora ao filho.
Pois é, Bernardo estou na marca da terceira passagem de bastão - ou melhor, de navalha. Como se diz, apesar de não ter acompanhado o féretro fúnebre, já enterrei dois. É uma profissão de risco, pelo jeito.
Mais um delicioso texto, como homenagem ao Alceu.
Escorreu uma lágrima de saudade aqui.
Meu pai, barbeiro durante meio século, faleceu (aos 90 anos) em fevereiro deste ano. Não deixou herdeiros na arte de fazer uma barba e/ou cortar um cabelo. Preferiu que os três filhos cursassem uma universidade. Para ele, a melhor herança que poderia deixar. Encontrei em sua gaveta um caderno com anotações de nomes de cerca de trezentos clientes que atendeu ao longo da vida, além de dois importantes e antigos instrumentos de trabalho: uma navalha e uma tesoura.