#ContraALiberdade
A sentença que condenou o comediante Léo Lins rompe com a distinção entre representação ficcional e realidade
Num dos momentos mais memoráveis de Alice Através do Espelho, Lewis Carroll coloca Alice diante de Humpty Dumpty, que, sem o menor constrangimento, afirma:
“Quando uso uma palavra, ela significa exatamente o que eu quero que signifique — nem mais, nem menos.”
Alice, atônita, pergunta se é possível fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes. Humpty Dumpty responde com desdém:
“A questão é saber quem manda — só isso.”
Essa cena, tão absurda quanto familiar, revela o risco do poder quando se apropria da linguagem. No fundo, é isso que se passa quando uma sentença judicial decide o que uma piada “realmente” significa. Quando uma sentença ignora contexto, intenção, ficção, ironia. Não importa mais a lógica da arte ou o pacto do riso: importa quem manda.
Poucas coisas revelam tanto sobre um tempo quanto aquilo que ele censura. A sentença que condenou o comediante Léo Lins afirma, com todas as letras, que o palco deixou de ser linguagem artística. A decisão judicial trata o show de piada como palanque de declaração, interpreta o exagero como intenção e substitui a análise da forma pelo julgamento do conteúdo. O palco, nesse contexto, deixa de ser espaço simbólico para se tornar prova criminal. Claro, tudo depende do lado em que você está na história. Da minha parte, a liberdade de expressão artística é sim ilimitada, principalmente para ofender.
Fui ler a sentença, e o que, de fato, chama a atenção é que ela rompe com a distinção entre representação ficcional e realidade. Sequer aceita a ideia de persona cômica. Trata o artista como autor direto de tudo o que diz em cena. Em vez de buscar compreender a natureza do discurso cômico, quer culpados. O moralismo é monolítico e impiedoso.
A sentença parte do seguinte pressuposto: a figura do animus jocandi, tradicionalmente usada para distinguir a fala cômica da fala ofensiva, é descartada por sua origem histórica. Segundo a juíza, essa categoria pertence a uma época ultrapassada, em que se toleravam piadas com negros, judeus, pessoas com deficiência e outros grupos vulneráveis. Em outras palavras, a noção de intenção humorística foi desqualificada por associação com um passado que se deseja enterrar. Segundo ela, nossa sensibilidade cívica progrediu. Nada como ser paladina da civilização.
Pode até parecer pomposo, mas esse raciocínio não é nada técnico. É, para ser preciso, um tipo de falácia genética. A sentença rejeita o conceito não por inconsistência lógica, mas por contaminação moral de origem. Como o animus jocandi foi utilizado em contextos de exclusão, sua validade é automaticamente revogada. Isto é, o fundamento da decisão não se apoia na análise do que o conceito permite ou proíbe em termos de linguagem simbólica, mas em sua genealogia social.
A consequência desse gesto de autoridade é óbvia. O humor perde sua gramática. Absolutamente toda piada passa a ser interpretada como ato direto, sem mediação de sua forma simbólica. O comediante não representa, ele afirma. O palco não encena, registra. A sentença sustenta que o riso já não pode ser tratado como categoria de linguagem distinta. Esse tipo de comédia é, sim, para a juíza, uma forma grave de discurso de ódio.
Uma das coisas que mais me chamaram a atenção na sentença é que a juíza simplesmente rejeita a existência de uma persona cômica. Ela afirma que o réu, no palco, é o “Leonardo”, ou seja, a pessoa civil responsável penalmente pelo que declara. Em sua formulação, não há personagem. Há tão somente alguém que sobe ao palco para declarar aquilo que pensa. A performance é confissão.
Ela escreve: “Inicialmente, LEONARDO se referiu a pessoas com deficiências auditivas, inclusive com gestos e imitações”. O uso do prenome civil — grafado em caixa alta — revela o apagamento completo da mediação artística. A juíza enxerga ali não um intérprete em cena, mas um cidadão diante de um microfone.
A juíza afirma que, como o stand-up comedy não utiliza acessórios, cenário ou personagens evidentes, então não há persona. Para justificar essa afirmação, ela recorre a um verbete da Wikipédia. Nesse verbete, lê-se que o stand-up é “humor de cara limpa”. O argumento da sentença se baseia nessa passagem. A ausência de teatralidade visível é interpretada como ausência de representação. Não, não estamos dentro da obra de Kafka.
Essa leitura literal de um estilo informal transforma uma descrição de linguagem em doutrina jurídica. A expressão “humor de cara limpa” serve, em contextos jornalísticos e de bastidores, para diferenciar o stand-up de formas mais teatrais de comédia. Não se trata de um conceito técnico. Não define estatuto de linguagem artística. Apenas descreve, sem grandes compromissos teóricos, uma estética de apresentação. Quando a sentença adota essa descrição como critério legal, destrói qualquer possibilidade de compreender o stand-up como ficção.
O próprio Léo Lins, em sua defesa, invoca a teoria do filósofo Simon Critchley para demonstrar a diferença fundamental entre pessoa física e persona cômica, entre fala de palco e declaração pessoal. Aqui é preciso entender que o humor só existe quando há uma fissura, uma distância, uma espécie de “falha na ordem” entre quem fala e quem é. O comediante não representa a si mesmo: ele encarna a caricatura, o bode expiatório, o ridículo universal. Sua função é tensionar o pacto moral, revelar contradições, experimentar os limites da linguagem.
Ao suprimir essa diferença, a sentença escolhe o caminho do autoritarismo: decide, de cima, quem o artista deve ser — e o que pode ou não experimentar com a linguagem. A recusa judicial em reconhecer a persona cômica é mais do que erro de leitura. É gesto de força.
Mais do que julgar o conteúdo de uma piada ruim, a sentença julga a própria liberdade de experimentar os limites do dizer. Leo Lins, ao recorrer a Critchley, refere-se justamente esse ponto: sua persona cômica existe para esticar os sentidos, para fazer o público tropeçar na linguagem, para rir do inaceitável sem, por isso, advogar por ele. Ora, ao ignorar essa distinção, a Justiça abandona qualquer compreensão minimamente aceitável da arte e troca a dúvida pela certeza, a experiência estética pelo dogma. Se a piada é um experimento com a linguagem, a sentença é um experimento contra a liberdade.
Na mosca! É exatamente esse o ponto em questão. Pretender que o tipo penal descrito na lei se aplica ao caso é fingir que piadas de palco e comentários políticos (como o que fez o assessor parlamentar que zombou de uma israelense sequestrada pelo Hamas) são a mesma coisa. É o tipo de confusão providencial quando se quer inocentar culpados e punir inocentes. Infelizmente, não é possível excluir a hipótese que se lei tenha sido criada para proporcionar esse tipo de confusão.
A avacalhação do judiciário é por si só uma piada. Todos interpretam livremente o que querem (com ou sem venda da sentença), como foi a decisão de um juiz que absolveu piloto e copiloto com 400kg de cocaína devido abordagem policial não ter sido regular, segundo o magistrado. Deveriam chamar isso de Decisão Lewandowski, que afirmou que a culpa sempre é da policia que prende mal.