O jornalismo brasileiro tem suas obsessões. No campo dos costumes, hoje em dia, existe a defesa do aborto, da legalização das drogas, da poligamia e, mais recentemente, da eutanásia. No campo da política, a lembrança permanente é a de que a origem de todos os males do país remonta ao 31 de março de 1964.
E, portanto, hoje é o dia da marmota no jornalismo brasileiro.
Para quem estudou “o papel do jornal”, como é o caso do estagiário do NEIM, é notável observar como a cabeça dos intelectuais no País retorna a esse “pecado original”. É bem verdade que os mais velhos ainda falam da Segunda Guerra Mundial – ou, melhor, falavam, não é mesmo? Porque agora o novo normal é o antissemitismo de quatro costados.
Mas, de fato, de 1985 para cá, a grande baleia branca dos escritores e intelectuais publicados e repercutidos na Terra de Vera Cruz sempre foi a manutenção do Golpe de 1964, como uma espécie de fantasma para a sociedade brasileira. Então, o mais educado dos jornalistas sabe em detalhes como Jango foi deposto; conhece de coração a censura aos grandes jornais da época e, por extensão, as virtudes da imprensa nanica; louva os feitos de Marighella e sua gangue de terroristas; e, por fim, sabe narrar o horror do assassinato de Vladimir Herzog nos “porões da ditadura”.
O editorial da Folha de S.Paulo é exemplar nesse aspecto:
Há 60 anos, os militares fulminaram pelo golpe o regime constitucional iniciado em 1946. Há 39 anos, o país enterrou a ditadura e instalou o seu mais longevo período democrático. É preciso relembrar, por motivos distintos e complementares, esses dois marcos.
O jornal, então, traça um paralelo escrito de forma eloquente acerca desses dois momentos da vida nacional, incluindo aqui um mea culpa por se tornar parte integrante dessa história:
A insurreição que depôs João Goulart recebeu apoio de vários setores da sociedade civil, do empresariado à imprensa —inclusive o desta Folha, um erro já admitido pelo jornal. Em 2022 os nostálgicos da truculência ficaram isolados.
Trechos como este acima mostram que o instituto de desculpa pública concede ao suposto réu uma autoridade sem precedentes. É uma espécie de trade off no mercado das ideias, em que, por exemplo, o jornal inglês The Guardian, ao admitir suas origens no regime da escravidão, se transformou assim no vigilante mais austero contra o racismo.
No Brasil, após finalmente reconhecer que emprestou carros para o regime de exceção (e depois de, em 2009, escrever um editorial falando da “Ditabranda”), agora diz que Lula deveria ter bancado a festa da Redentora:
É lamentável, aliás, que o atual presidente se veja constrangido a evitar atos de governo a respeito do aniversário do golpe.
Além do editorial da Folha, outros textos do jornal fazem do golpe um verdadeiro banquete. O problema é que, de acordo com as pesquisas (como já mostramos ontem aqui no NEIM), a sociedade parece cada vez menos preocupada com essa agenda.
A hipótese do estagiário é esta: a mão pesada (e peluda) dos jornalistas e editores em relação à ditadura, sempre retomando o assunto a partir de uma ótica absoluta, sem qualquer nuance, transformou, sim, a Ditadura Militar em uma história boa demais para não ser contada.
E assim, ano após ano, editoriais vetustos, colunistas graves e historiadores monotemáticos fazem do Golpe de 1964 um espetáculo; os jornalistas se refestelam porque, “no final do dia”, este é o único assunto com o qual se sentem à vontade para dissertar a respeito.
O resultado desse processo de formação não poderia ser outro, a não ser a anestesia dos profissionais de notícia, cuja imaginação só alcança até os anos 1960, quando o comando caçava comunistas e as canções de protesto louvam a resistência ao Golpe.
O problema da manutenção desse fantasma é justamente a criação de falsos mitos.
É o caso de Jair Messias Bolsonaro, que conseguiu ser expulso do Exército e, mesmo assim, foi capaz de catalisar para si o espólio de 1964. As Forças Armadas, a elite econômica e a classe média, de 1985 até 2018, não se interessavam pela História do Brasil como os jornalistas e a elite intelectual. Bolsonaro aproveitou essa lacuna e vestiu a carapuça de vilão.
É bem verdade que a intentona bolsonarista de 8 de janeiro deu vazão a uma espécie de remake dessa história enquanto produto. No jornal O Globo, o historiador Carlos Fico e a historiadora Heloísa Starling reagem à tentativa de conexão entre 31 de março de 1964 e o 8 de janeiro de 2023, afirmando que um foi pior do que o outro (em qual grau, eles não ousam dizer). Infelizmente, os dois especialistas estão com comprometidos demais com o tema para inferir a única interpretação possível, que é a seguinte:
Não existe boa história sem vilão. E o problema é que no Brasil todos queriam ser heróis.
E não se trata do “herói da retirada”, do qual fala Javier Cercas em Anatomia de um instante, livro essencial que trata da tentativa de um outro golpe, o que ocorreu na Espanha em fevereiro de 1981. Por aqui, entretanto, todos os envolvidos querem trazer para si um protagonismo indevido.
Especialmente os jornalistas brasileiros, que, com suas obsessões, mal dominam a arte de contar histórias.
Para a mídia a ditadura Vargas não existiu. Transformaram o vilão no herói Pai dos Pobres que só pode existir enquanto houver uma Casta inferior para garantir a propriedade do Estado para as Cortes que se aboletam nos palácios.
Zzzzzzzzzzzzzz