Tive três chapéus. Um, marrom escuro, perdi-o num taxi no Rio de Janeiro; os outros dois, um cinza escuro e outro preto, usei-os habitual e alternadamente até meus trinta e poucos anos de idade, quando Maria Teresa, minha pranteada esposa, decretou, com o fim da moda, a exposição pública de minha escalvada fronte.
Considerando que estou velho há bastante tempo e que o atual governo logrou aprovar o aumento dos tributos sobre transmissão de bens causa mortis, resolvi tomar algumas providências patrimoniais antes que a exação seja posta em prática.
A casa em que por décadas morei com Maria Teresa, doei-a mês passado ao Luís Felipe, meu sobrinho, que há de herdar o resto de meus bens, como já herdou as manias congênitas dos Telles.
Cedendo à pressão de Dona Antonina – a gentil senhora que cuida de minhas roupas, minha alimentação e de mim mesmo – voltei mais uma vez à velha casa para eventualmente salvar alguns objetos antes que, nas palavras dela, “o menino dê fim a tudo”.
À exceção dos móveis, que continuam todos lá, os objetos que me interessavam, supus tê-los retirados todos quando me mudei para o apartamento em que hoje vivo. Não obstante, lá estive, revirando prateleiras, gavetas, armários e as inevitáveis saudades das quais em vão tento escapar.
Recolhi dois livros antigos que eu supunha terem desaparecido junto com a Biblioteca de Alexandria; um volume antigo do Dicionário de Fatos Gramaticais e uma primeira edição do Santo Tomás de Aquino, de João Ameal.
Mas voltemos aos chapéus. Reencontrei-os, íntegros, solenes e – arrisco – talvez até mesmo saudosos da cabeça que no passado encobriram com tanta devoção.
Guardados em suas caixas originais, levei-os, juntamente com os dois livros, para a nova residência.
Domingo pela manhã, algo constrangido, fui com o Tristram – um cão da raça beagle que me faz companhia – à padaria tomar café; fui de chapéu cinza.
No elevador, encontrei dona Luísa Magalhães, minha vizinha do andar de cima, e sem que tivesse tido tempo de pensar, repeti o gesto que supunha sepultado com o telex, o relógio de bolso e o leiteiro de porta em porta.
Busquei não transparecer o espanto que senti ao perceber que dona Luísa Magalhães recebeu o meu desbarretar-me como a naturalidade de um bom-dia.
Caminhei calmamente até a padaria, tomei café e li meu jornal. Voltei para casa e guardei para sempre o chapéu e a lembrança de um tempo feliz.
Oi Bernardo, mais um domingo feliz ao nos brindar um de seus saborosos recortes pessoais. Sempre nos é uma leitura de estima, que toca nossa alma.
Quando minha família morou por um tempo no bairro da Aclimação, aqui em São Paulo, lembro do litro de leite de garrafa, resfriado e com tampa de alumínio, sendo entregue como assinatura no portão de casa. O leiteiro deixava-o ao lado d'O Estado de São Paulo - que hoje também, como o telex, e o relógio de bolso, já não mais existe.
Só eu amo os textos do Bernardo? Que feliz foi Maria Tereza!
O tempo da delicateza acabou, mas sempre havera alguem para traze-los de volta. 🥰