#Espantalhos
Francisco Razzo mostra os erros da Folha de São Paulo a respeito da defesa do jornal sobre o aborto
A Ilustríssima publicou um longo artigo para defender o aborto: Brasileiros são mais favoráveis ao aborto do que imaginam. O texto é assinado pelo neurocientista Álvaro Machado Dias e por Hélio Schwartsman. Eles tocam em vários temas acerca do aborto e apelam para uma série de espantalhos contra conservadores pró-vida. Não analisarei todo o texto, só a forma como abordaram os experimentos mentais. Se quiserem mais informações minhas a respeito do aborto, escrevi um livro inteiro sobre o tema: Contra o aborto, pela editora Record.
Vamos ao texto da Folha. O resumo já começa mal ao alegar que “autores apresentam experimento inédito criado por eles que mensura a opinião dos brasileiros sobre o aborto a partir de exemplos alegóricos, no intuito de evitar ideias preconcebidas e dogmáticas que se manifestam em perguntas diretas. Resultados apontam que, por analogia, a maioria tende a defender a autonomia da mulher sobre a vida que dela depende. Diferença constatada em relação a respostas conscientes e contrárias ao aborto decorre de um acréscimo moralista tido equivocadamente como valor universal, conclui texto”.
Primeiro, os experimentos apresentados no texto não foram criados por eles – eles mesmos reconhecem isso. Na verdade, o que fizeram foi uma patética versão romantizada. Segundo, se o objetivo era “mensurar a opinião dos brasileiros sobre o aborto a partir de exemplos com o intuito de evitar ideias preconcebidas e dogmáticas que se manifestam em perguntas diretas” (no caso das entrevistas), eles falharam, já que os experimentos mentais não traduzem a experiência efetiva do ato abortivo, como procurarei demonstrar. Ou seja, as perguntas podem, sim, induzir ao erro e a outras formas de preconceitos. Terceiro, se os resultados apontam que, por analogia, a maioria tende a defender a autonomia da mulher sobre a vida que dela depende, esses resultados estão errados, já os experimentos mentais deformaram a percepção das pessoas a respeito da relação entre autonomia do corpo da mulher e estatuto do embrião.
Mostrarei como a exposição desses experimentos é problemática; portanto, segue que toda conclusão do texto não merece maiores atenções.
Experimento 1.
Eles usaram uma versão romanceada do famoso “argumento do violinista” proposto pela filósofa Judith Jarvis Thomson, em 1971. Esse é um experimento mental destinado a explorar a moralidade do aborto, mesmo se assumirmos que o feto é uma pessoa e tem o direito à vida.
Citarei o próprio texto da Thomson:
"Você acorda de manhã e se encontra lado a lado em uma cama de hospital com um violinista inconsciente. Um famoso violinista inconsciente. Descobriu-se que ele tem uma doença fatal dos rins, e a Sociedade de Amantes da Música garimpou todos os registros médicos disponíveis e descobriu que só você tem o tipo certo de sangue para salvá-lo. Por isso sequestraram você e na noite passada seu sistema circulatório foi ligado ao dele. Assim, seus rins podem ser usados para purificar toxinas do sangue dele. Como também do seu. O diretor do hospital agora lhe diz: 'Veja, lamentamos o que os Amigos da Música lhe fizeram e com que nunca haveríamos de consentir se tivéssemos sabido antes. Mas enfim já o fizeram, e agora o violinista está ligado em você. Desligar você vai matá-lo. Mas não é trágico, são só nove meses. Por esse tempo ele terá se recuperado de sua doença e poderá se desligar com segurança de você.' Você é obrigado moralmente a concordar com essa situação? Não há dúvida de que seria muito simpático de sua parte fazê-lo, grande benemerência. Mas você tem que concordar? E se não fossem nove meses, mas nove anos? Ou ainda mais tempo? E o se o diretor do hospital agora diz: 'Sorte braba, concordo, mas você vai ter de ficar na cama com o violinista preso a você para o resto de sua vida, porque — lembre-se disso — todas as pessoas têm direito à vida, e violinistas são pessoas. Você tem seguro direito a decidir o que acontece com seu corpo, mas o direito de uma pessoa à vida suplanta seu direito a decidir o que acontece no e ao seu corpo. Assim, você não pode se desligar dele” (1971, p. 48-49)
Thomson utiliza essa analogia para questionar se é moralmente obrigatório para uma pessoa continuar conectada ao violinista. Ela argumenta que, embora seria gentil e altruísta continuar conectada, não é moralmente obrigatório. Ou seja, o problema central do argumento é discutir o altruísmo compulsório, sobretudo em casos de estupro – por exemplo. A grande conclusão de Thomson é a seguinte: mesmo que o feto seja considerado uma pessoa com direito à vida, não significa automaticamente que é moralmente errado realizar um aborto.
Esse argumento não lida com o estatuto antropológico do embrião, mas com o problema da autonomia do corpo da mulher. São as duas formas clássicas de discutir, em ética filosófica, o tema. Em suma, o argumento do violinista assumir o debate a respeito do direito ao uso do corpo de outra pessoa para sustentar a vida de um embrião. A conclusão de Thomson é a de que ninguém é obrigado a sacrificar seu próprio corpo para manter outra pessoa viva.
Os autores da Folha reformularam esse argumento para conduzirem perguntas para as pessoas. O resultado citado por eles:
Pergunta que eles formularam: “Na sua opinião, é obrigação de Isabela manter-se conectada ao artista?
Resultado, segundo eles: “A maior parte das pessoas, incluindo 74% dos brasileiros, como mostraremos mais adiante, acha que não”.
Mas qual é o problema central dessa pergunta? Ora, ela não apresenta efetivamente o problema do aborto.
A pergunta mais próxima da realidade do aborto, a partir do exemplo do experimento mental, seria e eu gostaria de saber o resultado dessa pergunta.
"Na sua opinião, é moralmente aceitável que Isabela, ao invés de simplesmente se desconectar os aparelhos, tome uma ação direta que resulte na morte do artista para não ter que se manter conectada a ele – por exemplo, contratar médicos para esquartejá-lo e jogar seus restos mortais no lixo hospitalar?"
Entretanto, o problema central no texto publicado pela Folha é não investigar as principais críticas ao argumento do violinista. Em vez disso, pincelaram algumas opiniões de “conservadores” que supostamente dariam a seguinte resposta: “Isabela não provocou a conexão com o grande músico. Já a mulher que faz sexo sem proteção expõe-se ao risco de engravidar. Os cenários seriam diversos”.
Ok, mas em caso de estupro? Então, diante dessa pergunta, conclui o texto da Folha: “aceitar que não existe a obrigação de salvar o violinista implica concordar com a tese de que o aborto deve ser legal quando há estupro, afinal, não há participação deliberada da mulher, assim como quando há falhas do método anticoncepcional, coisa que sabidamente acontece”.
Os principais críticos ao argumento do violinista não vão por esse caminho, vamos dizer, mais “fácil”.
O principal crítico desse argumento é o filósofo Christopher Kaczor, que escreveu uma excelente obra chamada A Ética do Aborto, no Brasil publicado pela Edições Loyola. Ele ofereceu quatro linhas críticas à analogia do violinista: o samaritano mal-entendido; a objeção da integridade corporal; objeção da consistência; a objeção de efeito buscado/previsto. Resumirei só as mais importantes.
Em resumo, Kaczor argumenta que a analogia falha porque o aborto envolve um ato direto de matar o feto, enquanto desconectar-se do violinista seria permitir que ele morresse de causas naturais. A intenção e a ação no aborto são diretamente voltadas para terminar a vida do feto, o que difere significativamente de retirar suporte vital. Quem pratica o aborto é consciente da eliminação da vida do embrião e não simplesmente terminar uma gravidez (indesejada, por exemplo, no caso de estupro). Essa é uma distinção fundamental e não mero jogo de imaginação. a diferença moral entre evitar danos e causar danos. No caso do violinista, a retirada de suporte pode ser vista como evitar um dano contínuo à pessoa conectada. No aborto, entretanto, o ato é de causar um dano direto e intencional ao feto.
Kaczor mostra como a analogia de Thomson falha em capturar a complexidade moral da gravidez e do aborto. A relação entre mãe e feto envolve uma responsabilidade que não está presente na analogia do violinista, tornando-a inadequada para justificar o aborto.
Sua principal linha crítica está em A objeção de intenção/previsão, pois aborda a diferença moral entre causar uma morte como um efeito previsto, mas não intencionado, e causar uma morte intencionalmente. Na analogia do violinista, a morte do violinista é um resultado previsto da "desconexão", mas não é intencionada. Isso se assemelha à decisão de não usar medidas extraordinárias para salvar alguém. No entanto, a maioria dos métodos de aborto (como sucção, dilatação e evacuação, dilatação e extração, e indução) envolve a morte intencional do feto.
Nesse contexto, há uma diferença moral significativa entre aceitar a morte como um efeito colateral previsto e buscar a morte intencionalmente. A distinção entre intenção e previsão é crucial em muitos contextos morais, como na comparação entre um dentista que causa dor intencionalmente e um que prevê a dor como um efeito colateral. Portanto, na maioria dos casos de aborto, a intenção é terminar a vida do feto, o que é moralmente diferente de simplesmente prever a morte como um efeito colateral. Kaczor conclui que, se a intenção de terminar a vida está presente no aborto, isso torna o ato moralmente problemático, independentemente de outros motivos que possam estar presentes.
O artigo da Folha conclui o seguinte:
“A publicação do artigo de Thomson marcou a ascensão do aborto ao panteão das questões tratadas com máxima seriedade intelectual. A resposta pró-vida veio pelo apontamento de que Isabela não provocou a conexão com o grande músico. Já a mulher que faz sexo sem proteção expõe-se ao risco de engravidar. Os cenários seriam diversos. Verdade, diz a réplica. Mas aceitar que não existe a obrigação de salvar o violinista implica concordar com a tese de que o aborto deve ser legal quando há estupro, afinal, não há participação deliberada da mulher, assim como quando há falhas do método anticoncepcional, coisa que sabidamente acontece. Como a questão prática em jogo é um dispositivo legal, chega-se à mesma conclusão da autora de que se discorda: o aborto deve ser assegurado como um direito feminino pelo menos em algumas situações.”
Impressionante como essa conclusão apresenta uma visão simplificada e falaciosa do argumento do violinista das respostas pró-vida. Os autores ignoram as críticas substanciais feitas por filósofos como Christopher Kaczor, que destacam que o aborto não é apenas uma "desconexão", mas um ato intencional de terminar uma vida, muitas vezes de maneira violenta. Eles aceitam que o argumento da Thomson não teve objeções além das caricaturas conservadora que eles criaram, não à toa defendem “a mesma conclusão da autora”. Além de tudo isso, usam a falácia de apelo à consequência ao sugerir que, por razões práticas e legais, o aborto deve ser permitido em algumas situações. Ora, a moralidade de uma ação não deve ser determinada apenas por suas consequências práticas, mas pela natureza ética da ação em si. As críticas pró-vida mais consistentes apontam que a vida do feto deve ser protegida independentemente das circunstâncias que levaram à concepção.
Agora vamos analisar o Experimento 2.
Imagine que "pessoas-sementes circulam pelo ar como pólen, de modo que, se você abrir as janelas, uma delas pode terminar germinando no seu carpete. Você não quer filhos, então você instala as melhores telas do mercado nas janelas. Ocorre que, em raras situações, uma delas vem com defeito e uma semente acaba entrando. Nessas circunstâncias, a pessoa-planta que agora se desenvolve tem o direito de usar a sua casa? Claro que não (...)" (Thomson, p.8).
Esse argumento está no contexto da “analogia do assaltante” usado por Thomson. Ele é utilizado para discutir a questão do aborto no contexto de falhas de métodos anticoncepcionais. Aqui, Thomson compara a gravidez indesejada resultante de uma falha de contracepção à situação de pessoas-sementes que entram na casa através de janelas protegidas por telas, destacando que, mesmo tomando todas as precauções possíveis, acidentes podem acontecer.
A ideia é ilustrar que, mesmo quando alguém toma todas as medidas razoáveis para evitar uma gravidez (como o uso de métodos anticoncepcionais), a ocorrência de uma gravidez indesejada não deve necessariamente implicar uma obrigação moral de continuar a gestação. A analogia tenta mostrar que, assim como você não é responsável por uma pessoa-semente que entra na sua casa mesmo com todas as precauções, uma mulher não deve ser moralmente obrigada a continuar uma gravidez indesejada resultante de falhas contraceptivas.
Há várias objeções a esse experimento, mas os autores do artigo da Folha criam um espantalho sobre os conservadores. Eles afirmam que os conservadores defendem que a relação biológica é crucial para a moralidade da escolha de abortar, implicando que essa relação seria o único critério relevante: “Conservadores fazem a ressalva de que é sabido que métodos anticoncepcionais podem falhar — e fechar os olhos para isso é sinônimo de aceitar os riscos. Ademais, dizem, violinistas e pessoas-sementes não têm qualquer relação biológica com a moça, em contraste com o seu filho biológico, o que é fundamental aqui.”
O problema é que as grandes objeções a esse experimento mental não foram usadas nas perguntas. Vou apresentar algumas retiradas do livro do Kaczor. Primeiro, há diferença importante entre o assaltante e um feto humano. É que o assaltante entra na casa por vontade própria, cometendo um ato ilegal e consciente. Como culpado, ele perde alguns direitos que uma pessoa inocente possui. Por outro lado, suponha que um “assaltante” entre involuntariamente na casa, como uma criança de 2 anos ou uma avó com demência que se perdeu. Christopher Kaczor sustenta que “essas pessoas não violam conscientemente os direitos de propriedade e nem sabem onde estão”.
Vamos esquecer as questões apontadas no texto da Folha sobre “os conservadores”, a da relação biológica. Vamos assumir que não há qualquer relação biológica, exatamente como Thomson propõe o experimento e perguntar o seguinte para os entrevistados: “Na sua opinião, é moralmente aceitável que, se uma criança pequena ou uma pessoa com Alzheimer invadisse uma casa por engano, o dono da casa pudesse esquartejá-la e colocá-la em sacos plásticos para o lixo, considerando que a invasão foi involuntária e sem intenção de causar danos?
Deixo a resposta aos leitores deste site.
Substitua o violinista ou o homem semente por um pet, um lindo filhote de um mico leão dourado, uma ararinha azul ou mesmo um pequeno e simpático cachorrinho, que as respostas, principalmente as da turma woke, serão completamente diferentes. Esses, em qualquer hipótese, sempre terão direito à vida.
Acho que o argumento deles é totalmente inválido. Pela seguinte falácia: eles presumem a metafísica fisicalista-mecanicista: tudo o que existem são coisas físicas regidas por leis mecânicas; logo, é uma petição de princípio. Disso, então, assumem uma moral das escolhas: o que é mais soberano é a escolha pessoal, uma vez que não há conexão inextricável entre eventos.
Já li o artigo da Thomson; e achei que o artigo dela só se sustenta com uma visão mecanicista - mas também, como este excelente artigo demonstra (e eu também já achava isso), a distinção conceitual feita por Kaczor, apenas na dimensão moral, também o refuta. Até porque ela e os abortistas, como já dito, pressupõe que há apenas causas eficientes e materiais (que era, na modernidade, uma heurística para investigar a natureza, logo houve uma metástase ontológica e, com efeito, virou uma metafísica deveras asinina). No entanto, há causas formas e finais - estas as mais importantes - que são causas de "alto" nível que se impõe sobre as causas de "baixo" nível. A primeira coisa a se perguntar é o que é o ser humano: a causa formal do feto é uma alma humana e, logo, possui dignidade; a causa final é o seu pleno desenvolvimento como pessoa. Assim, matar o feto é assassinato. Ademais, como Don Marquis argumenta, o aborto também é imoral porque vai impedir a pessoa no estágio fetal a ter todas as experiências que uma pessoa tem e teve. Uma pessoa só é pessoa porque tem uma natureza estável - a alma humana - que lhe dá dignidade. Porque se se sustentar, por exemplo, que alguém tem direito a viver por causa de faculdades atuais ou algum argumento utilitarista - o que seria uma antropologia das propriedades, ao contrário de uma antroplogia essencialista -, o corolário é cair em arbitrariedades: porque alguém para ter direito de viver precisa ter a faculdade x, e não as faculdades x e y?
Sobre a questão da causalidade biológica, acho que esse argumento, sim, faz sentido. Pois a causalidade biológica é a causa eficiente das causas de "alto" nível: causa formal e final. A atividade sexual tem uma causa formal - homem e mulher, toda biologia, etc - e a causa final - a criação potencial de uma vida, entre outras. Dado a potência causa final da atividade sexual, a moral edificada deveria ser fundamentada nesta ontologia. Por exemplo, até os abortistas - hipocritamente, claro, como sempre - assumem que é errado matar um inocente porque este tem direitos. Tal direitos são oriundos de sua causa formal - ser humano, que instancia a dignidade -, que é uma organização ôntica para uma causa final: a causa final é o respeito à pessoa, entre outros direitos, e deveres. Sendo assim, os abortistas fisicalistas que endossam a filosofia mecânica intencionam valores transcendentais ou absolutos - que vão além da natureza e, logo, refutam seu naturalismo - que possuem causa formal e causa final - por exemplo, a caridade seria uma causa formal para fazer o bem aos pobres, que seria a causa final. Veja que os abortistas acreditam (se não prima facie, mas) tacitamente em causas formais e finais, já que, de fato, é impossível, dado sua filosofia materialista-mecanicista, haver qualquer moral. E mais. Toda a sua preocupação com a mulher (que, de fato, não é preocupação coisa alguma, mas é um voluntarismo ctônico velado que tem o intento de continuar sua adoração orgiástica ao self) só se sustenta por uma metafísica (tácita) essencialista (ou supernaturalista): a mulher é um ser humano (causa formal); dado sua dignidade, é necessário uma ato para o seu "bem" (causa final).
Pace e Bene