À exceção da necessidade imperiosa de óculos bifocais, não me queixo da velhice. As perdas que ela implica nem sempre são de se lamentarem. Anselmo Gusmão – um meu amigo velho – por exemplo, gaba-se de sua leve surdez sempre que eu me queixo do barulho da capital paulista.
Eu não perdi a capacidade auditiva, mas supus ter perdido a aptidão que os jovens têm para a revolta e a indignação; enganei-me.
O Rio Grande do Sul tornou-se palco de uma tragédia de estrutura clara: há o destino, representado pelas forças da natureza; há o herói trágico, há o coro e há a catarse.
A tragédia — e sei que a explicação é escusada aos cultos leitores deste site — sempre se desenvolve a partir de uma escolha moral, seja uma escolha moral equivocada, como abandonar o filho neonato à morte para evitar um oráculo; seja uma escolha moral trágica, como ter de escolher entre sacrificar a própria filha ou ofender a Zeus, colocando em risco o próprio povo.
As chuvas e as inundações que levaram à morte centenas de pessoas e desabrigaram milhares são terríveis, são avassaladoras, são tristes e — dado que poderiam ter seus efeitos minorados por uma melhor organização do Estado — são revoltantes; mas a tragédia depende sempre do homem.
Homens e mulheres têm feito escolhas morais e as redes sociais tem-nas mostrado em tempo real.
Há homens e mulheres que, a pretexto de ajudarem, ostentam o que supõem ser virtude; estes foram bem representados pela figura patética de um senhor famoso que postou no Instagram um recibo de doação que fez; estes são apenas parvos.
Há os que fazem questão de registrar e publicar os rostos tristes e alquebrados das pessoas que estão esmolando; estes são aproveitadores baratos.
Há os que nem sequer pretextam ajuda. Limitam-se a registrar cadáveres e a trocar as imagens obtidas por cliques; estes são canalhas sádicos.
Há, ainda, os que furtam, saqueiam, roubam e até estupram pessoas que estão literalmente se afogando; a estes, nenhum de meus dicionários foi capaz de qualificar.
Há, entretanto, homens e mulheres que fizeram a escolha trágica de, em completo e absoluto anonimato, ofertarem a sua vida em sacrifício pela vida alheia.
Pessoas que, correndo o risco de deixarem mulher e marido, pais e filhos, meteram-se em lugares submersos para salvarem uma vida, qualquer vida que fosse, a de uma criança ou a de um gato; estes são os nossos heróis trágicos.
Eu, velho qual Tirésias, funciono nessa tragédia como mero coro.
Quanto à catarse, ela nos veio com a salvação da égua Caramelo (que talvez seja um cavalo), provando que em toda tragédia há sempre o signo da intervenção divina.
Se me permitem partilhar da indignação que o texto intensifica, há uma forma de nos sentirmos menos inúteis: participando pessoalmente, fisicamente (em vez de apenas financeiramente) dos esforços de ajuda ao RS. Assim como a comunidade judaica está trabalhando junto com a Defesa Civil de SP, doando, empacotando e etiquetando mercadoria, carregando caminhões, etc., sei de entidades outras, pela cidade, envolvidas em organizar material a ser enviado. É trabalho que requer presença, tempo, bom humor. Para meu marido e eu essa é uma forma de canalizar a raiva que fazer um PIX, ainda que indispensável, não oferece. E mostra aos (ir)responsáveis que juntos somos mais do que a soma das partes.
Mais um belo texto, Bernardo. Obrigado. Sua serenidade nos inspira em esperança. Sua aguda (e bem estruturada) percepção de nossa realidade diante do caos, nos auxilia em sensatez. E sua insuperável narrativa - concisa e fiel - se contrapõe às imagens televisivas tagareladas infinitamente, nos ajuda a respirar em nossa incensante busca de nosso papel moral e heróico, nesse mundo caído de Deus.