#Imprevisivilidades
Encontrar, por acaso, a casa em que Mircea Eliade viveu em Caiscais, traz a reflexão de que jamais poderemos prever onde o que vale a pena na alma pode nos levar
Durante algumas semanas estou em Portugal para algumas conferências acadêmicas e, como de vez em quando até professores merecem descanso, também para umas pequenas férias.
No caminho de Lisboa até a cidade do Porto, estou fazendo uma pequena parada em Caiscais, uma cidade costeira a 30 minutos da capital. Segundo atestam as investigações arqueológicas, a beleza do lugar já era apreciada pelos nossos ancestrais paleolíticos e depois pelo império romano.
Também foi na baía de Caiscais que aportou Cristóvão Colombo quando de volta de sua primeira viagem à América em 1493. Mas foi apenas no século XIV depois de Cristo que D. Pedro I de Portugal (não confundir com o nosso, que por aqui é D. Pedro IV e viveu quase 500 anos depois) o elevou a vila.
Mas de todos os viajantes ilustres, um ontem por acaso chamou-me atenção. Ao passear pela vila, topei com uma casa bonita e simples, com ar do que no Brasil chamamos, com razão, de “colonial”, com uma placa que registrava a efeméride: “Mircea Eliade, escritor, viveu nesta casa”.
Confesso que foi uma surpresa enorme. Durante um tempo na graduação devorei livros de Eliade. “História das Crenças e Ideias Religiosas”, “Mito e Realidade” e, sobretudo, “O Sagrado e o Profano” alteraram radicalmente minha visão sobre mitologia e religião, mas não tinha a menor ideia de que um dos maiores especialistas em religião do século XX havia sido adido cultural da Romênia em Portugal em 1941, vivendo no país até 1944. Fiz uma pesquisa rápida e encontrei o excelente artigo de Albert von Brunn, professor de filosofia ibero-românica e encarregado da seção portuguesa da Biblioteca Central de Munique que narra todo o périplo de Eliade em terras portuguesas, incluindo a sua casa de número 13 na pitoresca Rua da Saudade, no centro histórico de Caiscais.
A estada de Eliade em Portugal teve diversos eventos marcantes; tanto a morte de sua esposa, que imprimiu nele uma relação melancólica perene para como país, quanto seus escritos laudatórios sobre Salazar, que punham em destaque suas inclinações autoritárias. Sim, todos os adultos deveríamos saber que grandes pensadores e artistas também podem ser seres humanos execráveis. Não há nada de novo a ver aqui. Onde há um lembrete de coisas que valem a pena é na origem da atração de Mircea Eliade por Portugal.
Durante sua estada na Índia, Eliade apaixonou-se por Os Lusíadas e por Camões: “O meu desejo secreto era o de me concentrar no estudo da vida e da obra de Camões. Pouco a pouco comprei todas as edições anotadas dos Sonetos e de Os Lusíadas”, escreveu. Albert von Brunn sintetiza assim a experiência do estudioso romeno:
“Portugal significou para Eliade uma vivência crucial: um adeus à pátria, à própria cultura, à primeira mulher”.
Mas para mim, a visão de sua casa quase idílica em Caiscais, tão próxima ao mar que, segundo ele, ganhou seu sentido estético definitivo pela pena de Camões, remete também a outra coisa. Um livro, uma ideia, um autor, podem não apenas nos transportar para mundos diversos através da imaginação ou do deleite. Pode-se viajar a um lugar “apenas” por conta de uma obra de arte. Pode-se atravessar o atlântico apenas para falar sobre ideias, discutir sobre o futuro da humanidade e outros problemas que realmente valem a pena. E, por vezes, é a leitura de um livro que altera os rumos e os espaços de uma vida. Pode-se acabar saindo do Brasil ou da Romênia, ir para Copenhague ou Caiscais por causa de uma imagem, de um conceito, de uma tese. Nunca sabemos, antecipadamente, onde o que vale a pena na alma pode nos levar. Não há nesse terreno nada de exato. E não é também esse o sentido do verso revisitado daquele outro gênio português? “Navegar é preciso; viver não é preciso”.
Mircea Iliade foi um grande companheiro qdo estudava a Grécia arcaica.
Que interessante!