#interludio: A Fé Das Crianças
Sem uma disposição infantil para o bem, não há vida que resista
Por Fernando Lima Cunha
HÁ COISA DE DOIS ANOS, uma amiga desabafou conosco. Sua filha pequena acostumou-se, um pouco por si mesma e um pouco por influência dos desenhos e filmes que assistiu, a acreditar no Papai Noel: na noite de Natal, o bom velhinho viria e depositaria sob a árvore o brinquedo tão sonhado. Criança, repito; nem dez anos de idade. Acreditar fazia bem à menina, e ademais a decoração natalina da casa reforçava a convicção: a árvore enfeitada, o pisca-pisca, os brinquedinhos temáticos; fora os cartões e presentes antecipados que chegavam e eram depositados sob a árvore. Na inocência da menina, não havia porque duvidar do Papai Noel, pois todos os anos ele vinha, sem falha; se não pela chaminé que afinal não havia, ao menos pela porta destrancada, e deixava o presentinho na noite de Natal.
Pois um dia, no início das férias escolares, a menina passou um fim de semana na casa da amiguinha. A família dela entrou lá numa conversa e, quando o assunto Papai Noel veio à baila, a mãe da amiguinha de pronto resolveu puxar a menina das nuvens: o bom velhinho não existe, é lenda; ele não passa em sua casa coisa nenhuma; quem compra o presente numa loja comum é seu pai que trabalha etc. etc.
A menina ficou desconsolada, aos prantos. Nossa amiga teve de ir buscá-la mais cedo do passeio. Claro, perguntou-se o motivo do choro, e sem cerimônia a mulher explicou ter dito a ela que Papai Noel não existe. Justificou-se: “pensei que ela soubesse. Vocês não ensinaram?”
A mulher agiu certo? Talvez as opiniões se dividam aqui, tenho certeza; e posso imaginar que lado irá ganhar por maioria de votos.
No caso, a mãe da menina não explicara essa dura verdade da vida – ainda. Ela o faria, disse; esperava o melhor momento para explicar tudo, talvez quando a menina se mostrasse mais madura para receber a notícia com naturalidade. Ela sabia a filha que tinha, enfim.
O caso dá o que pensar. É realmente necessário destruir as ilusões – esperanças, digamos – de uma criança apenas porque as nossas também foram destruídas em algum momento? Note a delicadeza da situação, embora não pareça: eu, você, nós temos o direito de destruir a fé dos pequenos? Por que exatamente, por que eles irão sofrer de um jeito ou de outro na vida?
Essa foi a opinião de outra conhecida nossa, quando lhe contamos o caso. Ela tem preparado suas meninas para a realidade, disse, para um mundo de contrariedades, desapontamentos e decepções. Não seria exagero dizer que este é o padrão dos lares brasileiros: fazer dos filhos uma espécie de trainee, de estagiário dos males inescapáveis porque, todos sabem, essa é a realidade. Para a mentalidade brasileira média, seria esse um ato de amor.
Será mesmo? Pensemos bem, será que a realidade é toda feita de dores e decepções? A ser assim, não seria algo sádico ou no mínimo irresponsável trazer filhos ao mundo? Por exemplo, se eu já sofro o suficiente, vou lá trazer um inocente para sofrer comigo neste vale de lágrimas? Não disse isso à segunda amiga para não perder a amizade.
De minha parte, tendo a apoiar a primeira amiga. Não me vejo como dono da verdade (de resto, uma expressão estúpida). O ponto não é a existência ou não do Papai Noel (que de fato existiu, de certa maneira; restou a lenda, a tradição), mas a preservação daquela fé ingênua das crianças. Aqui está o ouro. E fiquem os pais tranquilos e descansados: quando as crianças deixarem de sê-lo, saberemos, sem precisar forçar. Digo por experiência própria.
Sem dúvida que alertas e precauções fazem parte da educação familiar, e é inegável que negligenciá-las seria irresponsabilidade, nada menos. Mas a “brincadeira” do Papai Noel pode ficar fora disso até hora oportuna. O que importa, creio, é preservar na criança aquela fé inocente sem a qual ninguém entrará no reino dos céus, como diz o Evangelho. Errada a amiga não está.
“Deixai vir a mim os pequeninos”, disse o Cristo, e acrescentou, “digo que se não fordes inocentes como essa criança, de modo algum entrareis no reino de Deus.” Está no evangelho de São Lucas, capítulo 18, versículo 16. Ora, adultos não poderiam ser inocentes como as crianças mesmo se quisessem, e Cristo sabe disso muito bem; mas eles podem aceitar a inocência como escolha, como uma renúncia necessária do saber demais, talvez na forma de desviar o foco das maldades e de mil outros-lados-da-moeda lá fora; o adulto pode adotar uma benfazeja suspensão do julgamento por um instante que seja. Disso o Cristo está falando. Do contrário, não há iniciativa possível nem vida possível, no limite. Sem boa fé ninguém vai a parte alguma. Se toda a existência não passar de dor e desilusão, viver não vale a pena, levantar da cama toda manhã não vale a pena. Imagine-se transmitir uma coisa dessas aos pequeninos. Praticamente um crime. Qual o interesse em solapar o Natal das criancinhas?
Há portanto essa coisa de bancar o abominável realista, o distribuidor das desilusões. Depois dessa machadada a seco na ingenuidade infantil, a explicação deste realista não melhorará as coisas: tudo é o pai ou a mãe que trabalha e compra o brinquedo numa loja comum. Desse ponto em diante, o que antes era magia e emoção vira operação pecuniária mesquinha; o que antes era congratulação com mesa farta vira só mais uma refeição, com pratos meio diferentes e nada mais.
O que defendo é algo que, na falta de melhor termo, chamaria de disposição poética na gente, ainda que seja por uma data, uma semana, um par de dias para cultivar a boa ingenuidade. Salvo engano, desconheço uma disposição dessas no Brasil. Não custa nada, ao menos em relação às crianças. Por outro lado, destilar sempre esse fel da descrença no período natalino, despejar esse banho gelado sobre as criancinhas é pura maldade, ainda que sem a intenção. Ter sofrido isso na própria infância não justifica. Não há porque transferir o mal.
“Mas isso é a realidade”, alguém pode insistir. Muito bem, falemos então da realidade.
Realidade
A realidade é ontológica, isto é, uma espécie de ente neutro e generalizado repleto das mais variadas contingências. Ela paira acima de categorizações, de juízos de valor; ela pode ser boa e má a depender do juízo que fazemos sobre ela, ao que lhe atribuímos. Trata-se de uma sutileza do intelecto: se, numa dada situação, dizemos que a realidade é má, temos necessariamente de ignorar todos os aspectos diferentes que não corroborem nossa afirmação e nos atermos àquele pequeno, ínfimo fragmento mau – juízo que, de novo, nós mesmos atribuímos. E talvez tenhamos razão, claro. Mas enquanto isso, a realidade em si mesma continua para além de tempo e do espaço. A realidade se estende para além de acontecimentos isolados que nos atingem de um modo ou de outro.
Então a realidade é sempre sinônimo de males e de hostilidades? Claro que não. Ela também pode ser boa, todos os dias. Se os bandidos apresentados no jornal vespertino são a realidade, o canto matutino dos pássaros também é. Aliás muito mais: estes ganham por ser maioria, mais rotineiros e frequentes. Os pássaros matutinos viram gerações de humanos atarantados com mil problemas e preocupações. Eles viram tudo desde sempre e, lá do alto, não desistem de gorjear e cantar. Eles simplesmente continuam.
Continuar. Podemos então dizer que a realidade também significa esperança: não se trata de situações boazinhas com males ocultos, em relação aos quais devemos ter um constante pé atrás, mas dessa bondade decorrente da continuidade no bem, da insistência desinteressada no que vale a pena, como os pássaros fazem. A troco de quê? Por nada a princípio, pelo bem em si. Isso basta.
De resto, ninguém nega a existência de ameaças ou perigos. Sem dúvida devemos ter vigilância, atenção, mas não medo, desconfiança generalizada, azedume. Azedume nos faz cínicos, embota a esperança e não permite enxergar o que realmente importa, o que fica apesar de tudo. De novo, a realidade nem sempre é má: uma boa notícia, uma pequena conquista, uma compensação, uma alegria; tudo isso é realidade. Daí que não custa deixar fluir aquela fé das crianças no Papai Noel até que ela seja, via maturidade, deslocada para as reais possibilidades da vida, enquanto se toma as devidas precauções contra revezes e adversidades. Tudo naturalmente, com a ajuda dos pais.
O que fazer e não fazer
Trazendo a conversa mais para o nosso quintal, este site vibrante – a um só tempo media watch, humor e cultura –, trata principalmente dos desmandos e desvarios das redações e dos gabinetes. É preciso fazê-lo, principalmente hoje em que há uma perigosa junção de ambos, redações e gabinetes, numa estranha simbiose. Quando o chamado quarto poder, a imprensa, se alia ao primeiro, ao segundo e ao terceiro poderes, perdemos todos nós, a gente comum. No fim das contas, o poder quer ser um só, especialmente no Brasil. No topo, os poderes querem se unir e se merecer.
Mas em meio a esse cipoal de interesses escusos e frivolidades, este texto pretende abrir algum clarão necessário: falar do período natalino em que cristãos e não-cristãos, todos motivados pelo espírito destes dias, reúnem-se, confraternizam-se e, acima de tudo, baixam a temperatura das suspicácias todas. Ao menos neste breve período do ano, como guerreiros retornados da batalha, podemos retirar a couraça que nos protege dos golpes da hipocrisia, das patranhas e das maldades do país e do mundo.
É Natal. A depender de onde olhamos, há motivos de sobra para negar a possibilidade do bem, mas, a despeito de toda aparência, resta a esperança. Sim, ela existe apesar de tudo. E a esperança é valiosa, não deve ser despejada no chão dos males sem cura. Eles, aqueles de sempre, não têm mais jeito; nós, sim. De modo que, se por um lado devemos estar atentos e vigilantes, por outro não podemos perder aquela umidade no solo interior que permite à boa semente germinar. Semente que deve ser protegida dos ácidos do cinismo, da incredulidade e da desesperança. E tudo isso porque, se o mundo lá fora vai mal, cá dentro podemos ir bem, sem precisar de muito para isso. Consumos natalinos à parte, o que realmente importa é sempre pouco e razoavelmente acessível. Exceções confirmam a regra.
De resto, os problemas continuarão a existir. As soluções também. Cabe prosseguir, avançar, e confiar que Alguém cuida de nós enquanto fazemos a nossa parte. Com aquilo que não podemos controlar, não devemos perder o sono. Saber refletir a respeito já será o suficiente. Descobrimos então uma lição valiosa que podemos aprender com as crianças: elas simplesmente acreditam e prosseguem com alegria, e isso vale por si.
Fernando Lima Cunha é redator e escritor em São Paulo - SP. Escreve no maravilhoso Substack chamado Prosaica e é autor do romance (inédito) “Francisco Maia”.
Minha filha sabe que o Papai Noel existe,ela o vê todos os anos no Shopping e ainda tira foto com ele.
Há muitos anos, meu filho pequeno chegou em casa aos prantos. Seu amiguinho Nando havia contado a ele que Papai Noel não existia. Era a mãe dele que comprava os presentes. Eu expliquei ao meu pequeno Alexandre, que de fato, no caso do Nando não tinha outro jeito. Como ele não acreditava em Papai Noel, era a mãe dele que tinha que desempenhar essa tarefa. Mas se o Alexandre acreditasse, então Papai Noel em pessoa traria o presente dele. Alexandre respirou aliviado e me assegurou que ele acreditava sim! Meu filho teve muitos amigos fantásticos na infância: Papai Noel, o Barba Negra, a Bruxa Onilda, e o gnomo Garabal que deixavam presentes na lareira. Hoje Alexandre tem uma filhinha de 5 anos, minha neta. E Garabal e Papai Noel seguem trazendo presentes...