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#interludio: A Hora do Lobo (2)

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A escrita noturna de António Lobo Antunes

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jun 19, 2024
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#interludio: A Hora do Lobo (2)
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[Leia a primeira parte do ensaio]

Por Fabrício de Moraes

***

O MAR, AS FLORES E O MUNDO

Para além dos símbolos recorrentes em sua obra (o espelho, o espectro, os pássaros, as flores, a noite e a pedra), a obra de Lobo Antunes é também coerida por certos projetos, nomeadamente, séries baseadas em localidades geográficas (como Arquipélago da insônia e Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?, que a princípio comporiam uma trilogia rural), ou “subjetividades” recorrentes, como a atriz amnésica de Caminho como uma casa em chamas (2014) e que é transfigurada na voz principal de Para aquela que está sentada no escuro à minha espera (2016).

Nesse sentido, vemos que, com exceção de O tamanho do mundo (2022), obra mais recente do escritor, os últimos romances retomam, com maior intensidade, as imagens de violência e terror que se faziam presentes em O meu nome é Legião (2007), que narra uma ação policial truculenta e desleixada contra adolescentes que haviam cometido atrocidades durante uma madrugada, e em Exortação aos crocodilos (1999), que demonstra, pela perspectiva de quatro mulheres, as torturas e crimes de um grupo terrorista de extrema-direita, durante o período salazarista.

Portanto, em A última porta antes da noite (2018), Lobo Antunes se inspira num crime real, ocorrido na região Norte de seu país, a fim de apresentar-nos, mais uma vez, uma narração fraturada, interpolada de incertezas, lacunas, zonas penumbrosas e que é constituída por um entrelaçamento de vozes, temporalidades heterogêneas e níveis distintos de consciência. Ao longo das páginas, somos embalados por cinco personalidades distintas, todas elas envolvidas na morte de um empresário, cujo corpo é dissolvido em ácido sulfúrico, num ato simultaneamente de ocultação de cadáver e de aniquilamento da própria culpa. Com efeito, o mote que alinhava as cinco consciências é: “sem corpo não há crime”:

e me mandou soprar apesar de apagadas, a minha mãe de combinação e eu uma camisola velha do meu pai que por pouco não me chegava aos tornozelos, de então para cá peço que não me falem de aniversário nenhum, assim de repente acho que não voltei a ver o meu pai, é possível termo-nos cruzado na rua, sei lá, mas o tempo modifica as pessoas consoante o ácido estava a modificar o homem, embora exista quem afiance que o sangue grita até hoje não lhe escutei uma palavra, o bidão fervia pulando assobios, via mal o nosso grupo dado que só uma lâmpada no teto a baloiçar num fio que nos transformava em criaturas vacilantes rodeadas de ecos de botas, nenhum comboio, nenhum cão, um pássaro negro, um mocho ou assim, atravessou obliquamente a janela a mover as asas num ruído de enciclopédia, páginas e páginas para cima e para baixo, se ao menos a erva cantasse, se ao menos os arbustos mais próximos, qualquer presença amiga a tranquilizar-me

— Estou aqui

(LOBO ANTUNES, 2018, p. 43)

Todavia, a violência que impera e contamina as ações e pensamentos das vozes nunca nos é apresentada diretamente; pelo contrário, por meio do processo de “lateralização” (termo de Maria Alzira Seixo), cenas pungentes ou truculentas são por vezes interrompidas em sua carga dramática. Em outras palavras, essa lateralidade implica o desvio voluntário da intensidade dramática no ponto exato em que se daria o clímax ou catarse de uma cena, de maneira que, quando de um relato pungente ou trágico, a narrativa se “lateraliza” e dá lugar à descrição de circunstâncias do momento, ou de objetos circundantes, ou, ainda, de memórias, desejos e conjecturas, e não do ato em si.

António Lobo Antunes: Numa grande fábrica cabe um grande escritor |  AbrilAbril

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