[Leia a primeira parte do ensaio]
Por Alexandre Janssen
III.
The King´s Two Bodies: A Study In Medieval Political Theology, de Ernst H. Kantorowicz, é um clássico estudo publicado em 1957 pelo historiador alemão e professor da Universidade de Princeton. Neste livro, é destrinchado de cabo a rabo o conceito dos dois corpos do rei: o corpo político e o corpo natural. Kantorowicz nos coloca em uma árdua empreitada do início até o fim da idade média, desenvolvendo essa duplicidade conceitual sob os vértices: cristão, legal e político, a partir de uma exuberante compilação de arquivos históricos. A obra começa relatando já no século XIII a existência legal desses conceitos, a separação entrei o rei pessoa física e o rei entidade política, a representação espiritual do governo.
No segundo capítulo, exemplifica-se esses conceitos com outro registro histórico e para nosso deleite, algo atemporal e belo: a peça Ricardo II, de Shakespeare. Kantorowicz mostra a tensão que passa a assolar a consciência do protagonista durante o desenrolar da trama. É uma tensão que se apresenta frente ao receio de sucumbir à separação do corpo político, ficando apenas com o corpo natural, quando se vê na iminência de perder o trono para seu primo, Bolingbroke. Segue parte da fala do então monarca no final da segunda cena, terceiro ato:
“Peço por Deus, sentemos no chão,
Pra relembrar tristes mortes de reis:
Uns Depostos, ou mortos na guerra,
Ou por fantasmas dos que depuseram.
Outros assassinados pela esposa
Pois na Oca coroa que circunda
A cabeça mortal de todo rei,
A morte tem seu reino e ali impera,
Rindo de sua pompa e de seu trono,
Concedeu-lhe que um- dia-represente
Ser monarca, temido ao simples gesto,
Inflamando lhe a chama da vaidade,
Como se a carne que sustenta a vida
Esse bronze invencível; distraindo-o
Pra no fim, com minúsculo alfinete,
Furar o muro do castelo e adeus,
Oh reis. Cubram então suas cabeças,
Não zombem com ritual de carne e ossos;
Desprezem tradições e cerimônias;
Pois me tomaram sempre por um outro:
Vivo também de pão, tenho desejos,
Sujeito a isso eu sofro, eu busco amigos;
Como podem dizer-me que sou rei?’
Além do receio natural de ser alvo de uma deposição, é exaltada a sua incapacidade de sustentar, em um só organismo, os dois corpos. A crença de uma magnanimidade pela coroa que habita seu espírito e lhe confere o status de um deus é pulverizada pela sua débil condição humana. Ricardo II pode ser visto como um modelo de pusilânime, segundo os conceitos de magnânimo e pusilânime de Ortega Y Gasset descritos no texto Mirabeau o Político. E sua figura assombrará todas as gerações posteriores. No prefácio de Ricardo II, na edição traduzida por Bárbara Heliodora e organizada por Liana de Camargo e Leão, é contada uma história em que a Rainha Elizabeth I, da dinastia Tudor, ao ver a peça, expõe seu grande medo de se tornar o próprio rei deposto.