#interludio: O Olhar de Górgona (2)
Um ensaio sobre o filme "A Zona de Interesse", de Jonathan Glazer
[Leia a primeira parte do ensaio]
Zona de Contestação
No nacional-socialismo, você olhava no espelho e via a sua alma. Descobria a si mesmo. Isso valia, par excellence e a fortiori (e muitas vezes mais), tanto para as vítimas como para aqueles que viviam por mais de uma hora e tinham tempo para confrontar seus próprios reflexos. E valia ainda para os demais, criminosos, colaboradores, testemunhas, conspiradores, os mártires incontestáveis (a Orquestra Vermelha, a Rosa Branca, os homens e as mulheres de 20 de julho) e até para os pequenos obstrutores, como Hannah Doll e eu. Todos nós descobríamos, ou inevitavelmente revelávamos, quem éramos.
- A Zona de Interesse, Martin Amis. Trad. Donaldson Garschagen (Pág. 361)
Zona de Interesse parece ser um filme que deliberadamente desafia nossa compreensão da Shoah a cada enquadramento. Jonathan Glazer compreende que há uma gama enorme de maneiras de se compreender o horror nazista, principalmente na etapa derradeira da Solução Final, mas de alguma forma nunca conseguimos compreender a dimensão multifacetada do que ele implica.
A Shoah foi lentamente entrando na consciência das pessoas no pós-Guerra, principalmente com a divulgação dos crimes nazistas durante o julgamento de Nuremberg. Mas, na cultura de massa, a representação do Holocausto foi lentamente ganhando corpo. Kapo - uma história do Holocausto (Kapo, 1960), de Gillo Pontecorvo, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, e a minissérie Holocausto (Holocaust, 1978), exibida pela NBC e um dos primeiros papéis de Meryl Streep, ajudaram a consolidar a imagem do genocídio nazista na mente dos nazistas. Mais significativamente, tivemos os dramas de históricos de Rainer Werner Fassbinder e uma profusão de livros de divulgação histórica que detalharam o que ocorreu no Leste Europeu nos anos de 1942 a 1945, como os de William Shirer (até hoje um bestseller) e os clássicos de Raul Hillberg, Saul Friedländer e Hannah Arendt (livros estes que aparecem na bibliografia do romance A Zona de Interesse, de Martin Amis). Porém, há uma dimensão mais pop ao nazismo também, que remonta às histórias em quadrinhos dos anos 40; a mais célebre é a imagem de Capitão América desferindo um cruzado em Adolf Hitler, mas que continuou nos filmes de Indiana Jones, Hellboy e jogos de videogame como Return to Castle Wolfenstein (e isso sem citar o subgênero exploitation de Nazi Women in Prison - Ilsa, a Guardiã Perversa da SS [Ilsa, She-Wolf of the SS, 1975, de Don Edmonds], sendo o exemplo mais notório).
Tudo isso de certa maneira muda nos anos 80 e 90 com o lançamento de Shoah (idem, 1985), o monumental documentário de nove horas e meia de duração, dirigido e produzido por Claude Lanzmann, e o lançamento blockbuster de A Lista de Schindler (Schindler’s List, 1993), de Steven Spielberg. O último filme, em particular, quebrou uma série de tabus de Hollywood, dentre eles a ideia de que “filmes do Holocausto não dão dinheiro”. Apesar do seu sucesso crítico e comercial, o longa de Spielberg atraiu uma série de ressalvas notórias, de pessoas como Jean-Luc Godard e do próprio Lanzmann. Os dois franceses acusaram o filme de Spielberg - em linhas gerais - de reduzir o Holocausto a um filme hollywoodiano, e onde o próprio sentimentalismo açucarado, além do final “arranca lágrimas”, serem uma forma de baratear e esconder a verdadeira dimensão do horror nazista. Curiosamente, críticas semelhantes foram feitas ao próprio documentário de Lanzmann, seja pela sua duração notória, seja pela sua própria técnica de entrevista, onde o diretor forçava os entrevistados mesmo quando estes não queriam dar prosseguimento com seus depoimentos. Todas essas críticas são pertinentes (eu mesmo tenho diversas ressalvas ao filme de Spielberg), mas o que podemos depreender disso é o fato de que temos um problema intrínseco na representação do Holocausto.