#interludio: Vá e Diga Ao Mundo Que Ainda Estou Aqui
Miguel Forlin disseca as virtudes e os defeitos cinematográficos do sucesso de Walter Salles
Por Miguel Forlin
Pegue uma família cujo sobrenome seja relativamente conhecido pelo público de seu país natal; escale, nos papéis do pai e da mãe, atores famosos e carismáticos; retrate-a (a família), durante a primeira metade, como uma daquelas de comerciais de margarina; insira um elemento disruptivo, que a abale por completo, como o desaparecimento do pai; faça os espectadores ansiarem pela sua reunião; e, por fim, dê ao todo um leve ar de relevância política e histórica; pronto, você tem um filme em suas mãos, e ele se chama Ainda Estou Aqui (2024).
O fato de a história narrada ser verdadeira não vem, do ponto de vista crítico, ao caso; o que descrevo acima é, pura e simplesmente, uma fórmula, a qual – e isto vale não só para ela, mas para toda e qualquer fórmula –, se aplicada sem nada que a faça sair do lugar comum, pode gerar, no máximo, uma obra cinematográfica mediana, como o longa-metragem mais recente de Walter Salles nos comprova. Pois Ainda Estou Aqui é, no sentido pleno da palavra, medíocre, já que sua realização se mostra, do primeiro ao último minuto, formulaica.
Salles até tenta nos ludibriar por meio de uma abordagem dramática aparentemente mais sóbria e distanciada, como se o desenrolar da trama estivesse sendo observado de forma documental; no entanto, o que parece mais sóbrio e distanciado é, em essência, fruto de uma direção acadêmica e burocrática, que emprega as ferramentas cinematográficas não a fim de potencializar a história ou dialogar formalmente com ela (por cumplicidade ou contraste), mas, sim, apenas para ilustrá-la e lhe dar seguimento (o que, convenhamos, não nos causa surpresa alguma, uma vez que Salles sempre foi um diretor de telenovelas e minisséries da Globo fingindo fazer cinema).
Ademais, para olhos cautos, capazes de enxergar não só os aspectos mais aparentes de um filme, mas, também, as engrenagens que o colocam em movimento, o caráter manipulativo é evidente. Salles sabe que, se uma fórmula existe, é porque ela funciona, e que, ao usá-la, mesmo que sem nenhuma inspiração, a chance de atrair atenção e números (como, por exemplo, 50 milhões de reais) é enorme. Dado que, em nenhum momento de Ainda Estou Aqui, parece ter existido algum tipo de ambição artística, supõe-se que o ordinário – a reflexão rasa, o sentimento barato, o choro fácil etc. – tenha realmente sido o seu objetivo, o qual, por sinal, ele atinge gloriosamente.
O resto, isto é, todo o sucesso que o filme vem tendo, é marketing, falação, politicagem e guerra ideológica (como, por exemplo, os elogios exagerados a respeito da performance de Fernanda Torres, que, embora bem no papel, tem, assim como sua mãe, tiques demais para entregar uma atuação irretocável). Pois Salles tem total ciência de que o verniz com que ele protege sua fórmula é perfeito para que, por razões outras, nenhuma relacionada ao cinema - o establishment cinematográfico brasileiro e internacional, composto de cineastas, críticos, sites de cinema, festivais, premiações etc. -, agarre o filme com unhas e dentes, protegendo-o como se fosse seu (o que, aliás, não deixa de ser verdade, visto que Salles é um dos seus membros mais ilustres).
Sabemos que a ditadura brasileira cometeu crimes contra a humanidade e destruiu vidas e famílias; e sabemos que, para que o ocorrido jamais se repita, sua memória deve permanecer viva (até quem renega essas coisas sabe que elas aconteceram – eles não as renegam por desconhecimento, e sim por interesses políticos e falta de caráter). No entanto, o conteúdo, por mais nobre que seja, nunca é suficiente para justificar a realização de uma obra de arte. Se intenções humanísticas bastassem para um filme existir e ser prestigiado, não haveria desafio algum em sua feitura, e o cinema se reduziria a um mero veículo de moralismos.
Em outras palavras, reduzir-se-ia a obras como Ainda Estou Aqui, que, no melhor dos cenários, só sabem, conseguem e querem ser corretas. Faltar-lhe-iam coragem, ambição, inteligência, espiritualidade, técnica, destreza, provocação etc. Faltar-lhe-ia, em suma, arte.
Querem um exemplo em sentido contrário? Para isso, não terei sequer de voltar muito no tempo, pois, neste mesmo ano, também chegou aos cinemas um longa que, como Ainda Estou Aqui, é um drama familiar e de costumes passado em um período e cenário de autoritarismo, violência política e física e instabilidade social: Zona de Interesse (2024), de Jonathan Glazer.
No entanto, o caminho percorrido por Glazer é inteiro artístico e cinematográfico. Diferentemente de Salles, ele dirige rigorosamente, uma vez que acompanha o dia a dia de uma família não de modo insípido, como se estivesse filmando uma série ruim de televisão, mas, sim, de modo ousado e criativo, como, por exemplo:
(1) a começar pelo ritmo, extremamente monótono, e reforçado ao longo de toda a duração do longa com a finalidade não só de simular o que seria o cotidiano calmo e pacífico daqueles personagens como também com a finalidade de suscitar em nós, através do contraste demoníaco entre a paz daquela casa e o pesadelo infernal que ocorria do outro lado do muro, um profundo incômodo espiritual, moral, psicológico, emocional, físico etc.;
(2) passando pela maneira com que Glazer escolhe filmar, que é, ao mesmo tempo, hiper controlada (cada enquadramento é composto com o propósito de gerar estranheza e enrijecer a frieza já fortificada de todo aquele ambiente) e, aparentemente, desprendida, na medida em que recria, à sua maneira, a estética de um reality show doméstico, com as câmeras posicionadas em lugares estratégicos a fim de formar uma atmosfera na qual os atores parecem não saber (embora saibam) que estão sendo filmados – o que reproduz um realismo inquietante e original;
(3) até chegar ao toque de mestre, que é o uso absolutamente genial (e bressoniano, apesar de “genial” e “bressoniano” serem sinônimos) do extracampo, formado em sua quase totalidade por sons diegéticos que nos sugerem as atrocidades sendo cometidas fora do quadro (as quais nunca nos são mostradas), e impelindo-nos, dessa maneira, a imaginar visualmente o que está acontecendo – e não há, para cada um de nós, nada mais assustador do que aquilo que concebemos em nossa mente, nem mesmo o que pode vir a ser exibido em um genuíno filme de terror (que é o que Zona de Interesse é em seu âmago);
Além do mais, a família retratada não é a vítima, e sim o algoz. Ou seja: o diretor nos coloca dentro da perspectiva do vilão, o que é, no mínimo, provocante e corajoso, haja vista a dificuldade sentida pelo público de se relacionar, tanto no âmbito pessoal quanto no âmbito emocional, com o inimigo. Fazer os espectadores se emocionarem com a destruição de uma família “perfeita”, como Salles tentou nos provocar com seu longa, é fácil; fazer os espectadores se comoverem e refletirem a partir do cotidiano de uma família nazista, nem um pouco. Pelo contrário, é extremamente arriscado e complexo.
Ironicamente, Salles e Glazer tratam do mesmo tema: a importância de se preservar a memória histórica. Todavia, um se importa com a forma – que, sendo também sentido, é essencial para a preservação daquela –, ao passo que o outro, não. E isso, meus amigos, faz toda a diferença.
Miguel Forlin é crítico, professor de cinema e cineasta. Foi colunista e, depois, coeditor da seção de cinema do Estado da Arte, do jornal O Estado de São Paulo; curador da Mostra Cinema & Liberdade; membro do júri da crítica da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo; parecerista de duas edições do PROAC; e professor do MIS-SP, onde ministrou o curso “David Lynch – Transformando Ideias em Imagens”. Atualmente, leciona na escola on-line A Arte do Cinema, da qual é um dos fundadores; colabora regularmente com a Versátil Home Video, distribuidora brasileira de filmes em DVD e Blu-Ray; coedita a Littera 7, revista online de cultura, que também ajudou a fundar; e está realizando, como diretor, seu primeiro longa-metragem, intitulado “Haceldama”.
Nota: Vejam também esta série de ensaios sobre o filme Zona de Interesse, escrita por Luís Villaverde -
E está dando aula para os assinantes do NEIM!
Eita aula maravilhosa, Miguel! 🙌
Você explicando e ainda mostrando a diferença com exemplos, sinceramente, me senti tua aluna!
Muito, muito obrigada e parabéns!
Com sábias palavras, disse o que muitos de nós pensamos, mas não saberíamos expressar de forma tão didática!
👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏
Parabéns Miguel