#KafkaEOMistério (2)
Nos cem anos da morte do autor tcheco, ainda ficamos impressionados com o enigma que o cerca
[Leia a primeira parte do ensaio]
Por Rodrigo Duarte Garcia
A obra de Franz Kafka é composta de fragmentos móveis e colagens viciosas, à forma justa e dolorosa dos paradoxos que percebia na realidade. São contos, novelas e romances que – em um estilo transparente lapidado nas leituras de Flaubert, Swift e as Sagradas Escrituras – retratam o mistério do mundo e todo o assombro da existência.
Se de um ou de outro modo toda arte tem pretensão ao realismo, Kafka buscava representar em formas novas essa realidade psíquica do espírito atormentado e espantado pelo mistério. As atmosferas criadas em sua obra remetem a terras devastadas, campos estéreis de inverno, labirintos burocráticos, catedrais arquitetonicamente incorretas e aldeias isoladas, perdidas na neve. Do mesmo modo, cada personagem é sempre construído ao plano de um intermediário com o inefável em suas formas mais terríveis: o mal e a culpa. Talvez por isso seja mesmo impossível amar um personagem de Kafka. São anti-heróis burocratas, agrimensores e caixeiros-viajantes de quem possuímos às vezes e no máximo uma certa pena, mas é só.
A verdade é que, para retratar o lado mais terrível da realidade, Kafka renunciou a uma arte que buscasse o belo e atirou-se de cabeça a uma representação do sublime, tal como entendia Edmund Burke, em seu A Philosophical Inquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful, de 1757: aquele delight fundado no terror que nos causa a vastidão e o infinito, o atributo artístico psicológico que infunde no receptor uma sensação de terror, mas aliada à margem de segurança da consciência serena de que, na realidade, não existe nenhum perigo concreto. Mas Kafka levou essa empreitada da representação do sublime às últimas conseqüências. Porque, em suas obras, o horror não nos traz margem de segurança. Ao contrário, traz à tona a consciência temível de que o perigo está sempre ali, inerente à nossa existência.