#naoeentrevista: Mark Lilla
Uma entrevista inédita e exclusiva com um dos maiores pensadores do nosso tempo
por João Pinheiro da Silva
Você dedicou grande parte de sua energia intelectual a se envolver com pensadores e ideias dos quais discorda fundamentalmente. Qual a motivação dessa postura e o que aprendeu com ela?
Você tem toda a razão quando diz que sou atraído pelos meus adversários, e é claro que me sinto obrigado a dizer que “devemos sempre tentar aprender com aqueles que discordam de nós”. Chega a ser um clichê.
Mas, para mim, é mais do que isso. O que é empolgante e desafiador em estudar aqueles cujas ideias me são estranhas é que elas me forçam a articular meus próprios pontos de vista e a encontrar os motivos - racionais, empíricos, psicológicos - pelos quais eu as defendo. Isso me obriga a confrontar-me, o que é difícil - muito mais difícil do que escrever literatura promocional sobre “meus autores favoritos”, que é como ir à academia para levantar pesos de apenas um quilo. Não me torna mais forte. Sempre que me pedem para escrever hagiografias, fico entediado e sem saber o que dizer.
Admiro aqueles que conseguem se sentar com uma folha de papel em branco e simplesmente começar a desenvolver um argumento, sem um adversário explícito. Eu não sou assim. Preciso de provocações que envolvam minhas paixões e minha consciência. Se uma folha de papel em branco fosse colocada diante de mim, eu me sentiria tentado a começar com “Pelo contrário...”
Em uma entrevista anterior, você mencionou que “se aprende infinitamente mais sobre política lendo Isaiah Berlin do que lendo John Rawls”. Poderia desenvolver esse ponto? Quais são os limites da teoria política analítica?
Certa vez, participei de uma conferência sobre Berlin em Oxford e ouvi uma apresentação muito apaixonada de Jeremy Waldron [um professor de direito americano] dizendo que não via sentido algum em ler Berlin. A questão mais premente da política é a justiça, dizia, e Berlin não ofereceu nenhuma contribuição para a pensar sistematicamente, ao contrário de Rawls. Berlin era apenas um tagarela erudito.
Isso aconteceu em 2013, época em que as principais notícias internacionais diziam respeito ao islamismo radical, à guerra contra o ISIS e ao estranho fenômeno dos jovens ocidentais não muçulmanos que deixavam suas casas e se juntavam à luta para restabelecer o califado. Assim, respondi à apresentação perguntando ao público quem os esclareceria melhor sobre esse desenvolvimento extraordinário: Berlin ou Rawls? É claro, Berlin. Muitos assentiram com a cabeça.
O grande tema de Berlin era, de certa forma, a psicologia política, não a filosofia política no sentido contemporâneo. Em seus ensaios e, em especial, em seus perfis de pensadores e atores políticos, temos uma visão de como a consciência é movida por paixões ideológicas e sentimentos comunitários (especialmente em relação a judeus). A guinada na teoria política acadêmica em direção à teoria moral de inspiração kantiana nos últimos 50 anos, que Rawls ajudou a liderar, fez com que a psicologia política como objeto de estudo fosse deixada de lado. Portanto, embora Rawls possa ajudar a esclarecer as ideias e os compromissos morais de uma pessoa, ele não ajuda em nada a entender a natureza da política como uma atividade social desenvolvida por seres humanos psicologicamente complexos.
Em seu primeiro livro, G.B. Vico: The Making of an Anti-Modern, você desafia a interpretação - endossada por pensadores que você admira, como o próprio Isaiah Berlin - de Vico como precursor da ciência social modernista e iluminista. Em vez disso, você argumenta que Vico foi o primeiro pensador europeu a apresentar uma teoria política profundamente antimoderna sob o disfarce de ciência social moderna. Você enxerga esse padrão de apresentar ideias antimodernas em fórmula moderna em outros pensadores reacionários?
Com certeza. Estou ainda mais convencido disso agora do que quando escrevi meu livro, uma vez que ainda não havia aprendido o suficiente sobre as variedades da reação política. Um bom exemplo é o desenvolvimento da ciência social francesa no século XIX, de Saint-Simon a Auguste Comte, incluindo o tresloucado Charles Fourier. Para todos estes, o objetivo da ciência social era construir e perpetuar uma nova coesão social na sequência da destruição do ancien régime pela Revolução - que todos eles saudaram. Ou seja, eles não eram reacionários voltados para o passado; acreditavam no progresso. Mas rejeitavam o individualismo moderno e se preocupavam com o declínio da religião. Comte, em particular, acreditava na necessidade de uma nova "religião do homem" e desenvolveu rituais elaborados e até mesmo calendários religiosos com dias santos que substituiriam os da Igreja Católica. Ele até transformou sua casta companheira Clotilde de Vaux em uma figura semelhante à Virgem Maria para ser venerada. Capelas foram construídas para a prática dessa religião em todo o mundo e muitas ainda existem.
Sua obra tem explorado consistentemente a interseção entre política e religião, culminando em The Stillborn God, livro em que argumenta que a "Grande Separação" da política e da religião não era inevitável nem definitiva. Dada a ascensão dos movimentos pós-liberais e integralistas - nos Estados Unidos, mas também na Europa - acredita que a teologia política voltará a ganhar força nas próximas décadas?
Se acreditarmos em seus defensores, a teologia política já foi revivida à margem da vida intelectual contemporânea por neo-católicos de vários tipos nos EUA, na Áustria, na Grã-Bretanha e em outros lugares. Mas qual é a relação entre esse desenvolvimento e as teologias políticas pré-modernas da Igreja Católica e da Reforma? As últimas foram inspiradas por uma revelação e pela fé nessa revelação. O que vemos hoje me parece mais inspirado por uma crença na necessidade humana da religião como forma de conter as forças da modernidade - em outras palavras, pelo mesmo impulso reacionário que inspirou as figuras francesas que acabei de mencionar. É por isso que não espero que o neointegralismo deixe uma marca duradoura no pensamento político e religioso ocidental, embora o impulso reacionário por trás dele possa deixar. Um genuíno renascimento da crença na revelação cristã é a condição necessária, mas insuficiente, para o renascimento de uma teologia política cristã genuína.
Um de seus ensaios recentes chama-se On Indifference (Sobre a Indiferença). A visão que expressa nesse ensaio parece contrastar com a de seu próximo livro, que será publicado você no Brasil pela Companhia das Letras, Ignorance and Bliss: On Wanting Not to Know, onde você critica a idealização da ignorância e a nostalgia de uma "era da inocência", elogiando, por sua vez, o valor do conhecimento e do confronto com a verdade. Por que deveríamos ser mais indiferentes? Qual é a diferença entre ser indiferente e ser voluntariamente ignorante?
Fico feliz que tenha feito essa pergunta porque ela revela uma ambiguidade em meus escritos recentes que devo esclarecer.
Para começar, meu próximo livro é, na verdade, uma exploração da psicodinâmica de nossas vontades conflitantes de saber e não saber a verdade. Há uma diferença entre não ter vontade de saber algo e ter uma vontade ativa de não saber algo. Sou indiferente a saber como a pressão barométrica é calculada; isso não afeta minha vida nem meus interesses. Mas ativamente não quero saber o que cada pessoa pensa de mim a cada momento do dia. Imagine que todos nós tivéssemos telas de LED na testa que mostrassem o que estamos pensando. Conhecer outras pessoas seria um novo tipo de inferno.
Esse exemplo mostra que há um certo não-querer-saber que é benéfico. Você se lembra da história "O Curioso Impertinente" em Don Quixote, sobre um homem que arruína seu casamento por ir a extremos para determinar se sua amada é fiel a ele? Há muitas situações como essas na vida. Portanto, Ignorance and Bliss não é nem um ataque absoluto à vontade de ignorância, nem uma defesa absoluta da curiosidade. Espero que o leiam.
Mas a indiferença que discuto em meu ensaio "On Indifference" é algo completamente diferente. O que está em jogo é até que ponto determinadas coisas - ou mesmo tudo - devem ser importantes para nós. A questão surge pela primeira vez na teologia cristã medieval: será que todas as nossas ações têm valor moral para Deus, ou apenas algumas? Um exemplo clássico, intencionalmente absurdo, discutido naquela época era se coçar a barba inconscientemente deveria ser considerado uma virtude ou um pecado: tertium non datur. Extrapolando, a implicação importante da pergunta era se existem áreas da atividade humana que estão fora do julgamento de Deus, que Lhe são indiferentes.
O motivo pelo qual escrevi sobre esse assunto, como o leitor eventualmente descobre, diz respeito à pressão moral que existe nos Estados Unidos, especialmente desde o "acerto de contas racial" que começou em 2020, para que se tome uma posição - e talvez até mesmo uma ação - em todas as questões políticas. Esse é um problema antigo na sociedade americana, devido à secularização do rigorismo moral puritano em nosso discurso público. O politicamente correto, em sua versão norte-americana, surge desse rigorismo. Ele presume que toda questão é moral (ou, como dizemos hoje, política), que a posição de uma pessoa reflete seu valor interior e que aqueles que não aceitam o consenso do momento devem ser denunciados e até eliminados.
Esse rigorismo, que talvez esteja diminuindo um pouco, pode contaminar tudo. Mas ele é especialmente corrosivo nas artes, especialmente nas artes visuais, onde a "sinalização de virtude" veio substituir a busca pela descoberta e expressão de uma visão pessoal. Por isso, eu queria defender o direito individual e a necessidade dos artistas de não ter uma posição sobre tudo. Dizer, assim como Bartleby o Escrivão [história de Herman Melville], que prefiro não o fazer. Todos nós precisamos de mais espaço e ar para respirar hoje em dia.
O seu ensaio mais recente, “The Tower and the Sewer” (A Torre e o Esgoto), publicado no NEIM, começa, de forma bastante reveladora, a sua análise do movimento pós-liberal e integralista americano em França. Como você vê o futuro da direita francesa após os resultados eleitorais surpreendentes da última semana? Acredita que poderemos ver resultados políticos semelhantes em outras partes do mundo?
Outra pergunta interessante que que me permite traçar uma distinção básica entre dois tipos de movimentos de direita existentes atualmente. O NR (Rassemblement National) representa um movimento sem uma ideologia clara. Ele expressa uma massa de queixas - imigração, controle das elites - que não estão conectadas por nenhum princípio discernível, além de "la patrie", e simplesmente dá voz ao "le peuple" neste momento. Ele também carrega consigo um legado histórico e sociológico ligado a Vichy, à Argélia e à personalidade de Jean-Marie Le Pen. Marine Le Pen tem trabalhado para "desdiabolizar" o partido, expurgando dele os elementos relacionados a esse legado, especialmente o antissemitismo. Mas sem esse legado, o partido efetivamente não tem base. E, na verdade, acho que isso é uma vantagem: sem uma ideologia desenvolvida, há uma barreira a menos para se tornar um partido de direita mais "normal". Não que isso seja garantido.
O segundo tipo de movimento é impulsionado pela ideologia e, justamente por isso, tem dificuldade em se transformar em um grande partido, pois tem mais dificuldade em fazer concessões. Além disso, há sempre uma competição entre os líderes ideológicos para determinar quem é mais puro representante da ideologia. Isso pode ser visto hoje na Nova Frente Popular de esquerda na França, que é mantida unida por pouco mais do que um adversário comum (o RN), um pouco de barbante e fita adesiva.
Eric Zemmour tentou recentemente criar um partido ideologicamente puro à direita, o Reconquête, mas quase não tem seguidores. Há um movimento católico pós-liberal, influente no jornalismo em particular, mas ele também não consegue estender seu alcance para além dos seus fiéis e não tem um representante oficial.
Acredito que essa seja a situação em que os movimentos de direita de todos os lugares se encontrarão em um futuro próximo. Somente na Polônia, país fortemente católico, foi possível desenvolver um partido de direita como o Lei e Justiça, que é essencialmente populista, mas que também pode recorrer ao simbolismo religioso. Em outros lugares, quanto mais ideologicamente puros forem os movimentos, menor será a probabilidade de governarem; isso deixa o campo aberto para partidos populistas que não têm uma base sólida, mas que podem ser cooptados pelo sistema democrático.
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Seu livro de 2017, O Progressista de Ontem e o do Amanhã, defendia, modo geral, uma estratégia democrata diferente, que não fosse marcada pela política de identidade. Essa parece ter sido a abordagem adotada por Joe Biden e Kamala Harris em 2020, e você observou na época que "isso é um bom presságio para o futuro". Quatro anos depois, o futuro não parece tão brilhante para os democratas.
Concordo, e a principal razão para isso é o foco exclusivo dos democratas eleitos em Trump, o homem. É compreensível, dada a sua imprevisibilidade e desprezo pela democracia, mas isso significou perder muito tempo tentando impugná-lo ou condená-lo em vez de se preparar para um mundo sem ele. Esse é um erro estratégico. Por outro lado, porém, eles compreendem a futilidade da política de identidade e a necessidade de se mover para o centro.
Mas quando as pessoas falam sobre "os democratas", elas não se referem apenas às lideranças eleitas; elas se referem à esquerda institucional onde quer que ela se encontre - nas universidades, na mídia, em Hollywood e assim por diante. E são esses "democratas" que não entenderam a mensagem. O motivo é que eles não têm nenhuma concepção de poder e se preocupam apenas com assumir posições e alçar pureza moral, não com a conquista e o exercício do poder. Isso só se intensificou desde o #meToo e o "acerto de contas racial" após o assassinato de George Floyd em 2020. Esses dois acontecimentos são importantes e trouxeram algumas coisas boas, mas mais uma vez tiraram os olhos da esquerda do verdadeiro objetivo, que é ter o poder de ajudar aqueles com quem mais se preocupa.
Portanto, independentemente do que acontecer nas próximas eleições, os democratas institucionais estarão em uma posição melhor para seguir em direção ao futuro, mas ainda terão de lidar com os restantes "democratas" que são os aliados mais poderosos, ainda que involuntários, da direita.
Mark Lilla é filósofo, autor de clássicos como A Mente Naufragada e A Mente Imprudente (editados no Brasil pela Record) e de livros mais recentes como O Progressista de Ontem e Hoje (publicado aqui pela Companhia das Letras, que também lançará a sua próxima obra, Ignorance and Bliss, a sair nos EUA em Dezembro). Este ensaio - exclusivo para o NEIM - foi publicado anteriormente, em língua inglesa, na New York Review of Books, edição de Junho de 2024.
O NEIM também agradece a João Pinheiro da Silva - licenciado em filosofia na Universidade do Porto e mestre em filosofia na Central European University - ao traduzir o texto, intermediar o contato com Mark Lilla e, finalmente, realizar esta entrevista exclusiva com o autor.
Foi um prazer entrevistar o sempre cordial Mark Lilla
Essa é uma entrevista sensacional. Não acredito que pago apenas R$ 10,00 por este site.