#ODeusDeMacIntyre
Há exatamente uma semana perdemos um dos grandes filósofos contemporâneos, o britânico Alasdair MacIntyre
A primeira coisa que salta aos olhos é o pouco ou quase nenhum destaque que a imprensa e os nossos bem-pensantes deram ao passamento de MacIntyre. No máximo, e em pouquíssimos casos, vimos uma ou outra nota ou coluna protocolar, que iam de dados biográficos gerais a tentativas de parecer bem informado sobre o que pensava o filósofo. Em ambos os casos, tudo escrito a partir das informações angariadas no ChatGPT ou, na melhor das hipóteses, na Wikipedia. Por isso, não quero aqui rivalizar com esse tipo de texto. Não pretendo nem recapitular a vida e a obra de MacIntyre, tampouco parecer que sou um especialista no pensamento de um dos mais necessários pensadores do final do século XX.
O que desejo é tão somente prestar uma homenagem a um filósofo que, após sua conversão ao catolicismo nos anos 1980, dedicou seu trabalho e sua produção a expressar talvez as duas maiores virtudes que se esperam de um pensador: honestidade intelectual e rigor.
Disse acima que a displicência sobre a morte de MacIntyre chama a atenção, mas, de fato, não surpreende. Isso porque as principais contribuições de seu pensamento tocam em um dos problemas mais essenciais da filosofia ocidental e em suas consequências contemporâneas que, por afetarem igualmente as duas grandes matrizes políticas e ideológicas disponíveis no cardápio do dia dos séculos XX e XXI, têm o mérito de mostrar as deficiências de ambos os lados e, portanto, desagradarem a todo mundo. Ao fim e ao cabo penso ser possível dizer que o problema central da filosofia de MacIntyre seja o problema da crise do fundamento na modernidade e em como as posições que se pretendem muito contrastantes - o marxismo (e progressismos vários) e o liberalismo - são, na verdade, corroídos pelo mesmo mal; ambos pretendem oferecer soluções aos problemas do mundo humano assumindo a priori a ausência de um fundamento para este mesmo universo. Mas então, como pode fazer sentido que, na melhor tradição do Barão de Münchhausen, que pretendeu salvar-se de um pântano puxando os próprios cabelos, um tempo que (como já lembrava Hegel) define-se pela recusa a qualquer base sólida, possa resolver os problemas causados por seus próprios axiomas? Seja em seu maior clássico, After Virtue, de 1981, seja em sua “continuação”, Whose Justice? Which Rationality?, de 1988, MacIntyre não fez mais do que aprofundar o diagnóstico e denunciar as deficiências das pretensas soluções:
Um dos fatos mais surpreendentes nas ordens políticas modernas é que elas não possuem foros institucionalizados nos quais as discordâncias fundamentais possam ser sistematicamente exploradas e mapeadas, e muito menos fazem qualquer tentativa de resolvê-las. O próprio fato da discordância freqüentemente não é reconhecido, sendo escamoteado por uma retórica do consenso. E quando, em uma única e complexa questão, como nas disputas sobre a guerra do Vietnam ou nos debates sobre o aborto, as ilusões de consenso sobre questões de justiça ou de racionalidade prática são momentaneamente rompidas, a expressão da discordância radical é institucionalizada de maneira tal que essa questão única é abstraída dos contextos de fundo de crenças diferentes e incompatíveis dos quais as discordâncias surgiram. Isso serve para impedir, na medida do possível, que o debate se estenda aos princípios fundamentais que informam as crenças de fundo (MACINTYRE, Justiça de quem? Qual racionalidade?, p. 13).
Mas não quero avançar muito neste aspecto. Embora a análise de MacIntyre tenha sempre sido uma referência para mim, desde que comprei, num sebo em Santo André lá pelos inícios dos anos 2000, a tradução de Depois da virtude da Edusc - com uma capa amarela de qualidade estética duvidosa -, o livro que me marcou de maneira especial não foi nenhum dos mais famosos. Foi um livro de 2009, que à época gastei uma fortuna para comprar na Amazon americana, que é uma reunião de pequenas, mas essenciais reflexões, intitulado God, Philosophy, University - A Selective History of the Catholic Philosophical Tradition. Lembro que comprei à época do lançamento porque já no título confluíam uma série de questões que já me ocupavam naquela época. E já na primeira página, nas primeiras linhas da introdução, encontrei o que há muito gostaria de ter lido da pena de um filósofo:
Three convictions led to the writing of this book. The first is that an educated Catholic laity needs to understand a good deal more about Catholic philosophical thought than it now does. The warring partisans on the great issues that engage our culture and politics presuppose, even when they do not recognize it, the truth of some philosophical theses and the falsity of others. If we are to evaluate their claims, we had better know something about philosophy and, if we are Catholic Christians by faith and commitment, something about Catholic philosophy.
A second underlying conviction is that Catholic philosophy is best understood historically, as a continuing conversation through centuries, in which we turn and return to dialogue with the most important voices from our past, in order to carry forward that conversation in our own time. So we only know how to direct our enquiries now, if we have first made our own the philosophical thought of our predecessors. A third conviction is that philosophy is not just a matter of propositions affirmed or denied and of arguments advanced and critically evaluated, but of philosophers in particular social and cultural situations interacting with each other in their affirmations and denials, in their argumentative wrangling, so that the social forms and institutionalizations of their interactions are important and none more so than those university settings that have shaped philosophical conversation, both to its benefit and to its detriment. (p. 1)
Mas para além de ter capítulos brilhantes sobre Santo Agostinho, Boécio e São Tomás, o que me chamou atenção ali e hoje, quase 20 anos depois, é uma ideia relativamente simples, mas tão iluminadora quanto o seu diagnóstico da modernidade. Relendo alguns trechos por conta de sua morte, revisitei um certo tipo de pensamento que, de tão importante pra mim, molda grande parte da minha visão de mundo e das coisas nas quais acredito fortemente. E tal pensamento se pode ler em alguns excertos do capítulo 4, “God, philosophy, universities”.
O primeiro deles tem um valor incalculável para alguém que não só pretende entender o mundo, mas o faz a partir de um quadro geral no qual Deus não apenas não é um corpo estranho, mas desempenha um papel elementar.
Theism, as I noted at the outset, is not just a set of doctrines about God. It concerns the nature of the natural and social universe as created and sustained by God, as embodying his purposes. For theists understanding how things are is inseparable from understanding them as informed by God’s purposes. So any study of physics or history or political science or psychology that omits all reference to God will be importantly incomplete. And this puts theists at odds with any purely secular understanding of such academic disciplines. Yet what would it be instead to understand them in the terms afforded by a theistic account of the order and nature of things?
Como afirma aí MacIntyre, o teísmo não é apenas um conjunto de proposições, mas a posição para a qual Deus é a condição de possibilidade última de todas as proposições, sejam sobre a natureza, sejam sobre mundo humano. No entanto, justamente por isso, quem pensa a partir dessa perspectiva está frontalmente em choque com a maior parte da academia para a qual o progressivo afastamento da ideia de um Deus é índice de progresso. O filósofo nos lembra então, de algo que está tanto na natureza da universidade quanto na natureza do pensamento filosófico:
For by either eliminating mention of God from the curriculum altogether (departments of religious studies concern themselves with various types of belief in God, not with God), or by restricting reference to God to departments of theology, such universities render their secular curriculum Godless. And this Godlessness is, as I already noted, not just a matter of the subtraction of God from the range of objects studied, but also and quite as much the absence of any integrated and overall view of things. (17)
Ao retirar Deus do currículo, a universidade e o pensamento humano não está se fechando apenas para um objeto específico, o que já é, sem dúvida, um prejuízo. Basta lembrar do que significava para Santo Tomás ou para Francisco Suárez pensar sobre o papel de Deus como objeto da razão. Para MacIntyre, estamos perdendo o motor e o horizonte de toda reflexão humana que é, em uma palavra, o desejo de uma unidade de sentido. A fragmentação da nossa visão de mundo atual, para a qual a modernidade consegue apenas apresentar sucedâneos insatisfatórios, faz com que fiquemos perdidos entre os avanços das ciências naturais de um lado e o assombro ante o vazio existencial de outro. Com isso, o próprio chamamento originário da filosofia, fica esvaziado ao poder oferecer apenas diagnósticos da nossa miséria e pouca ou quase nenhuma consolação. A poderosa afirmação de Heráclito há mais de 2500 anos, que também é uma afirmação sobre a natureza do filosofar - “não de mim, mas do lógostendo ouvido, é sábio homologar que tudo é um” (fr. 50) -, soa agora para nós tão ingênua quanto distante.
O Deus de que nos fala MacIntyre é o deus do lógos que pode e deve ser encontrado na experiência do conhecimento sobre a natureza, a história, a psicologia, a política e em todo o mundo humano, mas principalmente na reflexão sobre qual o sentido que toda a realidade apresenta a nós. Sem tal reflexão, nossas universidades e nossa filosofia fica incompleta. E sem MacIntyre para nos lembrar disso, ficamos um pouco mais desamparados.
Este texto foi publicado originalmente no excelente MetaPhi, que é o Substack oficial do professor Gabriel Ferreira, que nós, do NEIM, recomendamos vivamente. E você também pode indicar a todos que se interessam por ótimas reflexões filosóficas.
Gabriel, excelente contribuição, uma vez que, assim como você mencionou, pouco conhecemos de Alasdair MacIntyre. Li em outras paradas as repercussões enaltecendo sua obra e pensamento, mas tudo em inglês.
Sobre a ausência do fundamento, e o puxar-se pelos cabelos - o mal do secularismo que domina os dois espectros ideológicos -, lembrei-me de Peter Berger. Ele denunciava a abordagem secularista que tentava eliminar a possibilidade de Deus. No entanto ao se despir da variável referencial (Deus), pretende-se por igual modo excluir a religião da ordem institucional e da consciência dos indivíduos. E foi aí que a coisa empacou.
O fenômeno da religiosidade (no sentido ocidental e cristão) já era observado em partes do mundo, por mais que se debatesse a favor do secularismo. E hoje, podemos dizer que esse fenômeno de Deus ter voltado à pauta da discussão já é universal. E logo será mais que prevalente aqui também. Veja a força do Papa (Seja Francisco ou Leão) e o peso evangélico no nosso país.
Há sem sombra de dúvida, seja por gente não religiosa, pouco religiosa, ou antigamente religiosa, um retorno do indivíduo à posição de reconhecer Deus como essencial para sua vida.
Vão querer comparar Macintyre com Neymar ou Vini Junior? Com Debora Seco ou Vih Tube? Ocupar o mesmo espaço na mídia? Tenham paciência! Aliás, os cães ladram (filósofos) e a caravana passa (o povão universal). O mundo é na sua maioria constituído de idiotas medíocres ( sei da redundância). Digamos que o mundo é um mar de Lulas. (sei do trocadilho)