#ONossoFutebolEstáMorrendo
A seleção brasileira ganhou, mas o problema diabólico continua.
Assim como Dante encontrou o extremo da beatitude em Beatrice, o brasileiro viu algo semelhante no futebol originário dos ingleses. É um vínculo quase espiritual, mágico; nossa relação com este esporte vai além de explicações superficiais, como demonstrado pela Copa do Mundo, que atrai até quem diz não gostar do esporte.
O nosso futebol está refletido na arquitetura barroca das cidades imperiais, na determinação do povo em buscar uma vida melhor, no nosso jeito criativo de improvisar tarefas, e na capacidade de encontrar alegria mesmo na adversidade. O futebol é uma expressão do Brasil para o mundo, fazendo-nos sentir que temos um espaço próprio na realidade. Explica de maneira única quem somos em essência. Produzimos inúmeros craques e heróis, alguns caídos, mas muitos nobres como Leônidas da Silva, Zagallo, Pelé e tantos outros. De fato um panteão. Goste-se ou não, o futebol dá sentido à existência brasileira.
Como tudo no Bostil (versão geração Z do termo Bananal), vivemos uma crise de liderança, e o futebol naturalmente é afetado pelo mesmo problema crônico que aflige nossa nação, que parece não sair de uma adolescência tardia. Nosso futebol, que já foi expressão vibrante de nossa cultura, foi comprometido pelos dirigentes da CBF, acusados de corrupção, abuso de poder e assédio sexual. Falhamos em acompanhar as evoluções do futebol nos últimos 20 anos, permitindo que equipes como Marrocos e Japão rivalizem com a seleção pentacampeã mundial.
Recentemente, tivemos mais uma demonstração da inabilidade dos dirigentes da CBF. O atual presidente da CBF, Ednaldo Pereira, protagonizou mais um vexame internacional ao anunciar que havia fechado com um dos melhores técnicos da história, Don Carlo Ancelotti, para liderar nossa seleção para o ciclo da Copa de 2026, seria a panaceia para o câncer que aflige o futebol brasileiro. A imprensa esportiva carioca, que frequentemente define o tom da cobertura esportiva nacional, noticiou como certa a contratação. Porém, diante da primeira oportunidade de se livrar do compromisso (Ednaldo sofreu um quase golpe por meio do questionável Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), Ancelotti agradeceu o convite, mas afirmou estar feliz no Real Madrid. Quem não estaria, Carletto?
Com essa reviravolta, a responsabilidade recaiu sobre Dorival Jr, considerado por alguns como o melhor técnico no Brasil atualmente. Sua recente vitória de 1 a 0 sobre a seleção inglesa, com destaque para o jovem Endrick, a antítese perfeita do Menino Ney, reacendeu uma tímida esperança entre os torcedores. No entanto, o problema fundamental do futebol brasileiro permanece sem solução. Assim, nossa essência, o nosso fio existencial, continua a se desfazer.
Ontem, quando vi Endrick entrar em campo, antes do gol, pensei: "Talvez esse garoto seja o futuro". Não porque é craque, mas porque é craque evangélico. Explico.
Até pouco tempo, tinha a opinião-padrão: evangélicos são massa de manobra, pobres-coitados manipulados por pastores charlatões, e, a partir do bolsonarismo, manipulados também politicamente. Tudo verdade, mas só metade da verdade. A realidade é complexa. O ideal seria que o indivíduo tivesse só a si como guia entre as veradas imprevisíveis da vida. Esse é o verdadeiro forte, não aquele que esmaga o fraco (esse é o bandido). Dane-se o ideal. A imprevisibilidade da vida contém a própria fraqueza humana perante ela. Os evangélicos são pobres-coitados, iludidos, fracos, mas, no fim, que ser humano não o é? Admiro quem só tem a si contra o mundo, mas esse é minoria. Voltemos ao futebol.
Vislumbrei o futuro em Endrick pensando no velho estereótipo do craque brasileiro: o malandro. O último malandro funcional foi Romário. Depois dele, a malandragem deixou de ser a fonte do sucesso para ser a raiz do fracasso brasileiro nos campos. Ronaldinho Gaúcho, apesar de campeão do mundo, foi um fracasso, porque deveria ter sido maior que Messi. Mas enquanto o argentino estampou a capa da Time, o brasileiro bateu bola numa prisão paraguaia. A malandragem atinge o seu nadir com Neymar, o falso malandro, o eterno adolescente que se imagina malandro. Nele, a malandragem vira a mais pura babaquice: o craque intratável, incontrolável, cujo técnico não vê outra opção senão tratá-lo com regalias que humilham os companheiros de time. Romário era assim, mas trouxe a taça. Neymar, não. Importa? Nada. Tem uma balada-monstro para aproveitar, para desfilar toda a sua babaquice juvenil entre os parasitas da boa vida. O fim do futebol brasileiro é o fim da malandragem, na figura estupidamente juvenil de Neymar. Voltemos a Endrick.
Vaticinar é dar a cara a tapa, e as chances de terminar com um crachá de idiota no peito são grandes, mas, idiota que sou, vou adiante. Talvez a ética evangélica seja o antídoto. Superada a malandragem (quer marco maior para o fim da malandragem que o Petrolão? Lula foi solto e é presidente, mas as ruas estão vazias de petistas. "Onde estão os black blocs", perguntou Sérgio Manberti), é hora da seriedade, de ser adulto e decente. Eu sei, há os malafaias do mundo para revirar o estômago do leitor e jogar no lixo o meu argumento. Mas digo: não o superestime. Há mais vida própria nos evangélicos do que supõe o nosso vão cinismo. O âmago da questão é este: Endrick é, sim, o anti-Neymar, e talvez isso seja um bom negócio para o futebol brasileiro. Talvez.
Há um segundo ponto, má notícia para o Brasil: nas últimas décadas, o futebol se tornou o esporte do homem que pensa. Entre ter Guardiola ou Messi no seu time, os espertos escolhem o primeiro. E nesse quesito, o homem que pensa, Jesus não salva. Com ou sem maladragem, estamos ferrados. Alguém está a fim de assistir a um jogo de vôlei comigo? Nem eu.
Acho que além do crônico problema de gestão, tivemos uma geração fraca, muito dependente de um jogador (Neymar) que não se mostrou a altura da responsabilidade. Vislumbro dias melhores, não pela melhora na gestão do nosso futebol, mas por estarmos diante de uma promissora geração de jogadores que demostra compromisso com o esporte.