[Leia a primeira parte do ensaio]
1.
A armadilha da biografia pode ser resumida na seguinte simplificação: munido de documentos, depoimentos e bibliografia, o autor imagina que conseguirá reproduzir a verdade sobre o protagonista da história a ser contada. Só que, na verdade, ele será incapaz de sair da superfície que é a marca d’água do dataísmo, que é o cenário em que a sociedade se encontra hoje: repletos de números e informações, as pessoas são incapazes de escolher conscientemente. Em vez disso, apelam para os dados como se os números tivessem a solução para o nosso dilema, como se a ciência da precisão fosse capaz de esconder nossos vieses conscientes, nossa visão de mundo, nossa perspectiva como intérpretes do mundo à nossa volta.
Dito de outro modo, a despeito das informações, dos documentos, dos testemunhos e da bibliografia, cabe ao autor, e somente ao autor, a assinatura do relato biográfico.
No caso de Capanema, essa consciência não veio, assim, de repente, pronta. Antes de entender “a natureza do processo”, tive de investigar o que foi a política brasileira na passagem do século XIX para o século XX; qual foi o sentido que regeu a Primeira República e seus personagens; qual era o espírito da época que norteou os modernistas antes e depois da Semana de 22; e por que Getúlio Vargas foi inevitável como força motriz do Brasil que foi forjado na Revolução de 1930 – isso para falar da primeira parte da biografia.
O acesso mais lógico para alcançar essa compreensão era, sem dúvida alguma, buscar as leituras históricas sobre o período correspondente aos anos de formação de Gustavo Capanema. Nesse caso, a pesquisa se expandia: para além dos livros que tratavam especificamente da gestão Capanema à frente do Ministério de Educação e Saúde Pública entre 1934 e 1945, percorri os arquivos para entender as origens dessa pasta, ainda na chamada “República da Espada”, cujo nome era Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos. A abertura dessa “aba” me levou aos primeiros anos da República no Brasil – e à frustração de intelectuais como Lima Barreto, Euclydes da Cunha e Raul Pompéia com os rumos que aquela transição política, da Monarquia de D. Pedro II à “oligarquia do café com leite”, havia tomado. Então, além da história do período, em ordem cronológica, eu já estava mergulhando na literatura daquela época.
Aos poucos, começava a entender que precisava chegar no ponto cego para compreender a história desse personagem tão peculiar e, ao mesmo tempo, tão anódino que foi Gustavo Capanema.