#Racismo&Rancor

Uma tradição americana

[Leia a primeira parte do ensaio]

“Os habitantes dos Estados Unidos podem adiar as desgraças que temem, mas não poderiam hoje destruir suas causas.”

Alexis de Tocqueville, A Democracia na América, livro I, Leis e Costumes.

Quando os expurgos eram reais. Los Angeles, 1991-1992.

Na madrugada de 03 março de 1991 Rodney King dirigia seu carro pelas ruas de Los Angeles; ele e mais dois amigos estavam embriagados, seu Hyundai Excel cruzava a cidade em alta velocidade, e logo um carro da polícia rodoviária estava no encalço de seu veículo. King dirigia a 188km/h na tentativa de escapar da patrulha: ele sabia que se fosse parado teria problemas sérios, pois ao dirigir bêbado ele violava sua condicional por uma condenação de assalto. Ainda na tentativa de escapar, King seguia agora por ruas residenciais, a esta altura ele era perseguido por vários carros policiais e um helicóptero. O carro de King é finalmente cercado e agora ele e seus amigos estão nas mãos dos policiais, que ordenam que eles saiam do carro e se deitem no asfalto. De um apartamento próximo ao local onde o veículo fora parado, um homem filmava toda a movimentação. Mal saberia ele que as cenas que gravaria ganhariam notoriedade e incendiariam uma nação, cenas de brutalidade gratuita e violência sem sentido.

Em seus oito minutos de duração, o vídeo gravado por George Hollyday em videotape mostra um homem de pé cercado por carros de polícia e mais de 20 policiais; as luzes dos carros iluminam a cena e lhe dá ares espectrais, fantasmagóricos, ainda mal focada, percebemos o vulto do homem ser atacado violentamente por um policial com seu cassetete, ele cai, o espancamento continua, e logo em seguida, agora com o foco acertado, o homem caído se ajoelha em uma tentativa se levantar, novos golpes atingem seu corpo, seu rosto, outros policiais recomeçam a bater nele, ele cai no chão, de bruços, um policial pisa em sua nuca, mais golpes de cassetete; ele se ajoelha, outro policial chuta sua cabeça, uma, duas, três vezes, ele consegue sentar no chão, então ele é finalmente cercado por vários policias, que continuam a chutá-lo, até que finalmente ele tem suas mãos e pés amarrados, é levado até a beira da pista e levado embora. O vídeo de George Hollyday é um registro visual único e acachapante de uma violência policial que era corriqueira nas ruas de Los Angeles, quiçá de boa parte da América, em uma época em que tais registros eram raros e muitas vezes apenas produzidos por profissionais da imprensa; George Hollyday era apenas um homem comum, um encanador que havia comprado sua câmera um mês antes do incidente; ao acordar com o barulho na rua ele instintivamente pegou sua câmera e começou a filmar. Hollyday pertencia àquela classe de trabalhadores braçais que lutava para sobreviver com o suor de seu rosto; ele nunca ganhou nenhum centavo com o seu vídeo, e até sua morte aos 61 anos por Covid-19 em 2021, ainda trabalhava como encanador.

O homem que Hollyday filmou sendo espancado era Rodney King. As imagens do vídeo ganhariam o mundo e seriam utilizadas no julgamento posterior de quatro dos policiais que agrediram King, e mais ainda, teriam impacto para muito além dos limites judiciários e jornalísticos, influenciando a sociedade e a cultura de forma profunda: dois exemplos importantes são a recriação que Oliver Stone fez do espancamento em seu filme Assassinos por natureza, de 1994, e a música do grupo Body Count, “Cop Killer”, liderado por Ice T, e que causou reações iradas dos setores mais conservadores da sociedade americana, ao ponto da música ser excluída de futuras prensagens do álbum (tornando o original uma raridade entre colecionadores) e impossível de achar em streamings legais hoje em dia.

Em 29 de abril de 1992, o júri absolveu os policiais de agressão e do uso excessivo de força. O resultado parecia confirmar que o Sistema protegia e garantia aos agentes da lei liberdade para fazer o que quisessem, e a cidade, traumatizada, fraturada e envolta em um cotidiano de tensões e ressentimentos, explodiria em uma onda de violência, saques e brutalidades sem precedentes.