[Leia a segunda parte do ensaio]
Família literária de Jaime Ramos
Há mais de 30 anos Jaime Ramos trabalha como investigador na polícia da cidade do Porto. Muito pouco é revelado sobre sua família: sabemos que sua ex-esposa, agora falecida, foi comunista acima de tudo (existe outro tipo de comunista?). Ele até tentou praticar o mesmo fervor ideológico, mas desencantou-se à medida que entendia a verdadeira natureza do fanatismo, como outros - infelizmente, poucos - de sua geração. Se em Luz de Pequim, em 2022, ele tem 60 anos, deve ter nascido na década de 1960, portanto em plena era salazarista. Seria um adolescente em 1974, na Revolução dos Cravos. E teria ingressado na carreira policial por volta de 1990. Essas datas o colocam em um panorama histórico de ditadura, seguida de democracia, e de altos e baixos na economia, até os anos 2000, quando Portugal desponta aos olhos do Ocidente como a alternativa europeia barata, segura e saudável. Ao mesmo tempo, no Brasil, por exemplo, nossos próprios altos (poucos e débeis) e baixos (muitos e profundos) da economia levaram milhares de brasileiros a emigrar para Portugal. O turismo também intensificou-se, e com ele, as drogas, a criminalidade, e o trabalho para cidadãos do bem como nosso Jaime Ramos. Ele aprende muito observando os seres humanos que emergem das fissuras no solo nessas circunstâncias, enquanto faz seu trabalho policial. É um policial pensador de nobre linhagem.
Atribui-se o início do gênero policial a Edgar Allan Poe com o lançamento de The murders in the Rue Morgue (Assassinatos na Rua Morgue), em 1841. Foi publicado em fascículos nas colunas de Graham's Magazine, uma revista da cidade de Philadelphia, berço da independência americana. Algumas características do gênero já foram estabelecidas desde então. O principal é a presença do herói, na figura do detetive, que simboliza o bem, frequentemente avesso às regras sociais, e do criminoso, simbolizando o mal. É frequente o uso de dados técnicos, judiciais ou midiáticos para dar credibilidade à narrativa. Pense em quantos C.S.I. você já viu. E em um bom romance policial, tudo que é necessário para a solução do crime está presente, ainda que disfarçado, na narrativa, sem apelo a soluções mágicas que estariam fora do âmbito da imaginação do leitor. E finalmente, a surpresa, tradicionalmente reservada à solução do mistério, mas atualmente valorizando a esfera psicológica dos personagens, como praticamente em toda obra de Simenon, e mais recentemente, no brilhante Canção de ninar, de Leïla Slimani. A partir destas características surge um universo de romances policiais de todos os tipos, que se enquadram, melhor ou pior entre o whoddunit (quem foi? em inglês), o thriller jurídico, o thriller médico e o noir (negro, em francês).