[Leia a primeira parte do ensaio]
– por Bernardo Lins Brandão
Um exemplo: a Divina Comédia é especialmente popular pelos cantos do Inferno, em sua percepção profunda dos vícios e vicissitudes do humano; mas é no Paraíso que atinge seu nível mais elevado. Para falar da experiência do céu, que está para além de todo conceito, Dante leva a linguagem ao limite: dissolve o seu sentido referencial e a transmuta em algo maior, em símbolo saturado de significação. Um empreendimento quase impossível; um milagre e uma conquista permanente da língua. Liszt, em um de suas sinfonias mais ambiciosas, compôs um Inferno e um Purgatório; a peça final do Purgatório, que representa a chegada de um Dante já purificado ao paraíso terrestre, é uma de suas mais sublimes obras; no entanto, persuadido por Wagner de que nenhum compositor terrestre poderia expressar adequadamente a alegria do céu, não ousou musicar o Paraíso. O silêncio pareceu-lhe mais capaz que a música de apontar para a experiência que Dante transpôs em palavras. Eis o grande feito da Comédia e a razão mais profunda pela qual se tornou um dos maiores poemas de todos os tempos: ela nos trouxe – a todo leitor que a leva a sério – de volta o assombro, o que pôde fazer por dizer aquilo que, por excelência, é o fenômeno saturado.
S. João da Cruz foi outro dos grandes poetas do fenômeno saturado da contemplação de Deus. Em suas Coplas feitas sobre um êxtase de alta contemplação , ele escreveu:
eu não sabia onde entrava
porém quando ali me vi
ignorando onde estava
grandes coisas entendi
não direi o que senti
pois segui desconhecendo
toda ciência transcendendo
O mote do poema, o verso toda ciência transcendendo, é o seu reconhecimento de que fala sobre o que não pode ser dito, pois não pode ser compreendido. Isso, entretanto, não é apenas um foco de sua poética, mas também de sua teologia; ambos tratam da mística, mas, para ele, a poesia era o primordial, já que considerava seus tratados como glosa e explicação de seus versos. Sua intenção, contudo, não era apenas falar sobre suas experiência inefáveis, mas conduzir o leitor até elas. Era a potência anagógica o que, para ele, havia de mais importante em sua poesia. É sobre essa potência que quero agora falar. Mas, para isso, precisamos voltar à história do termo mística.