#unamuno: O Amor que Move o Sol e os Outros Astros (2)
Filosofia, Cosmologia e Divinização em Platão e Cícero.
[Leia a primeira parte do ensaio]
– Por João Pinheiro da Silva
III.
Meditações semelhantes sobre a dimensão ética da reflexão cosmológica podem ser encontradas em vários outros textos da Antiguidade. O próprio professor Reis Pinheiro, num outro artigo, chama a atenção para uma passagem das Meditações de Marco Aurélio em que lemos:
Observa o curso dos astros como se os acompanhasses no giro e reflete assiduamente nas mútuas conversões dos elementos. Esses pensamentos lavam a impureza da vida terrena.[6]
O argumento da digressão do Teeteto é praticamente repetido: a reflexão cosmológica, a observação do “curso dos astros” e o exercício espiritual de os acompanhar nas suas revoluções perfeitas, purga a alma e realinha-a de acordo com o padrão celeste.
Encontramos esse mesmo padrão no magnífico Somnium Scipionis, ou O Sonho de Cipião, de Cícero. Se tentei até agora reproduzir – ou macaquear, dadas as minhas parcas capacidades – o argumento do professor Reis Pinheiro, foi apenas porque julgo ver nele, mais do que uma análise brilhante de Platão, uma chave hermenêutica para entender uma parte substancial das digressões filosóficas e cosmológicas da antiguidade. No caso, podemos entender a onírica viagem cosmológica descrita por Cícero como parte desse mesmo processo de purificação da alma através da reflexão cosmológica, numa morte para o mundo que se torna, surpreendentemente, uma nova e mais plena forma de vida.
O Somnium Scipionis é um milagre literário e filosófico. A um só tempo, breve e profundo, a quantidade de informação que Cícero consegue encapsular num texto tão curto, sem nunca comprometer a sua acuidade, é verdadeiramente assombrosa: em meia dúzia páginas, é-nos oferecida a melhor síntese da cosmologia neoplatónica já escrita, uma excursão pela história de Roma, um drama tocante entre pai e filho, uma reflexão sobre a frugalidade da vida terrena, um argumento para a existência de Deus, e um sonho.
Cícero não foi propriamente original. Mas os seus dotes retóricos, incomparáveis na antiguidade tardia, aliados ao seu espírito omnívoro, ofereceram uma ponte entre o mundo helénico e romano, e permitiram que, por assim dizer, a “semântica” grega ganhasse uma “sintaxe” latina. O Somnium Scipionis, mais especificamente, alargou essa ponte ao mundo cristão, tornando-se um texto extraordinariamente influente na idade média, principalmente sob o comentário neoplatónico de Macróbio, escrito no século V. As suas descrições vívidas do cosmos ptolemaico influenciaram Boécio, foram referidas no romance arturiano de Chrétien de Troyes, replicadas na Commedia de Dante, narradas por Chaucer, pintadas por Raffaello e musicadas por Mozart. A sua influência é, portanto, inestimável.
O texto descreve um sonho de Cipião Emiliano em que este é recebido pelo seu avô, o grande general Cipião Africano, que o leva numa viagem pelo cosmos, além das esferas celestes, onde profetiza vários eventos da sua vida futura e, no processo, lhe oferece um vislumbre da beatitude eterna que aguarda as almas virtuosas. Ou seja, Africano dá ao seu neto a oportunidade de, elevando-se, olhar para baixo e ver as coisas terrenas de uma nova perspectiva.