JÁ que é preciso começar de algum lugar as memórias dos três anos, um mês e quinze dias em que fui vendedor da Livraria Cultura, avançarei no futuro para contar um fato que foi testemunhado por outro “companheiro de trincheira” que deseja permanecer anônimo e ficou lá mais tempo do que eu. Portanto, ele viu “o início do fim”, especialmente quando, em 2017, ao entrar por acaso no elevador minúsculo que levava os clientes da célebre (e gigantesca) loja do Conjunto Nacional do andar térreo para o superior, percebeu que também estava na presença dos seus patrões, os três donos da empresa – o patriarca Pedro Herz e os filhos Sérgio e Fábio –, e notou que o clima entre eles era tenso. Em apenas um minuto (talvez menos) de conversa, esse rapaz, espremido no compartimento, assistiu Sérgio (então presidente da Livraria) reclamando com Fábio (no papel de diretor-financeiro) sobre a luxuosa revista que a empresa distribuía gratuitamente a quem visitava o lugar, enquanto Pedro (membro do conselho de administração), que via o periódico como a sua “menina dos olhos”, suportava os resmungos dos dois com surpreendente estoicismo, até que ele finalmente disse, com uma voz irritada e sorumbática: “Vocês dois já foderam com a minha empresa, agora querem foder com a minha revista?”.
O linguajar chulo com os filhos era o oposto da imagem que o próprio Pedro queria apresentar aos outros fora do seu círculo familiar: a de que era um sujeito sofisticado e de que ele tinha tudo sobre o seu controle. Naquela época, a Livraria Cultura já abrira em 2013 a filial no Shopping Iguatemi de São Paulo da Avenida Brigadeiro Faria Lima (um dos pontos de alto padrão financeiro da capital); e, a partir de 2015, “seu” Pedro (como o chamavam) foi o apresentador de um programa chamado “Sala de Visita”, exibido no YouTube exclusivo da empresa, no qual usava a sua rede de contatos – de jornalistas a escritores, passando por intelectuais e estilistas de moda – para exibir sua simpatia. De certa forma, a atração no YouTube também simbolizava, aos olhos do grande público, o auge da Cultura como um exemplo de sucesso que não parava de crescer há mais de vinte anos. Em 2014, a empresa mal sabia que, a partir daquele momento presenciado pelo vendedor naquele elevador, o seu único rumo seria somente ladeira abaixo.
Porém, não foi por falta de aviso. Desde 2007, quando eu saí do meu posto de vendas na filial do Shopping Villa-Lobos, a maioria dos funcionários já percebia que a “antiga Cultura” não era mais a mesma. A saída gradual de Pedro Herz do controle da empresa, passando as decisões estratégicas importantes para Sérgio e Fábio, indicava a mudança definitiva de rumo – uma mudança cujas consequências foram levadas ao extremo e descritas na petição do juiz da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o Dr. Ralpho Waldo De Barros Monteiro Filho, divulgada em 9 de fevereiro de 2023. Ele foi o responsável por determinar a sentença que quebrou (literalmente e definitivamente), depois de anos de agonia e angústia, uma verdadeira instituição – na verdade, o reflexo da história brasileira dos últimos cinquenta anos e que se despedia diante dos olhos do público com a triste mancha de ter “relatos de indícios de fraude”, segundo as palavras do magistrado.
ENTREI na Livraria Cultura no início de 2004, após passar em um processo de seleção muito peculiar. Formado em Jornalismo, mas insatisfeito com os rumos da profissão na cidade onde morava – Campinas –, decidi que iria tentar alguma sorte em São Paulo – e a Cultura me parecia ser o lugar certo para tal conquista. Pedi a meu amigo Dionisius Amêndola, que então trabalhava lá, a indicação do meu nome para o setor de vendas – e assim iniciei minha jornada.
Obviamente, como qualquer jovem de classe-média que gostava de livros e tinha dificuldades de conseguir os últimos lançamentos editoriais, especialmente para quem morava no interior do estado, já conhecia a excelência da empresa. Todas as vezes em que eu ia com meus pais na capital, sempre fazíamos uma parada na loja do Conjunto Nacional, localizada na Avenida Paulista, e lembro-me que meu pai me incentivava a comparar algum livro – o que depois ele ficava meio arrependido porque sempre gastava mais do que o permitido no nosso orçamento. Posteriormente, em 2000, quando fomos à filial recém-inaugurada do Shopping Villa-Lobos – uma variação elegante das megastores populares que a Livraria Saraiva implementou no país a partir de 1996 –, era muito raro eu não sair de lá com menos de duas sacolas de livros, CDs e DVDs nas mãos (de novo, para desespero do meu pai).
Portanto, ao ingressar na Cultura e morar sozinho na Pauliceia Desvairada, eu tive a ilusão de que trabalharia com um objeto que sempre apreciei: o livro (além dos discos e filmes, é claro). O acervo total da Livraria era a grande diferença em relação aos seus competidores (em 2007, Pedro Herz se gabava de ter mais de 1 milhão de itens à disposição dos clientes; em 2018, o número chegou a 9 milhões). Porém, não foi bem com isso que eu tive de lidar durante o período em que fiquei na empresa – e encontrei os primeiros indícios de que teria de mudar logo a minha atitude na seleção de futuros funcionários, realizada pelo departamento de Recursos Humanos. Exceto por um ou outro concorrente, que também era de classe-média e desejava trabalhar na Cultura porque tinha as mesmas fantasias, a maioria das pessoas que se reuniam no 9º andar do prédio Horsa 2 do Conjunto Nacional (onde ficava o quartel-general da empresa) estavam ali por um único motivo: como qualquer bom brasileiro suficientemente alfabetizado, elas precisavam de um emprego.
O processo de seleção de RH tocava no assunto “conhecimentos gerais”, mas com parcimônia; o critério principal visava perceber quem conseguia trabalhar em grupo, orientar aqueles que tinham dificuldade na dinâmica de equipe, ajudar o candidato a realizar a tarefa. Não à toa, em uma das fases, exibia-se um vídeo motivacional, mostrando gansos que voavam como um time, edulcorado com frases típicas de manuais de autoajuda; depois, os selecionados se reuniam em uma sala e brincavam de “Escravos de Jó” (uma metáfora apropriada e premonitória, como veremos em breve) e quem se perdia no ritmo da cantiga era o eliminado da turma (o RH somente observava, sempre com o auxílio de um vendedor veterano, quem se regozijava da falha do outro, o qual era expulso da seleção). Somente na última fase havia uma entrevista com o diretor do departamento, que aprovava ou não o seu destino final na Livraria.
No meu caso, cumpri todas as etapas, mas não recebi nenhum aviso sobre se eu teria sido ou não rejeitado. Foi um mês de espera. Como queria sair de Campinas a qualquer custo, peguei um ônibus para São Paulo e fui lá sem avisar ninguém da equipe de RH para perguntar sobre o meu desempenho. Os funcionários do departamento ficaram surpreendidos com a minha insistência; pediram desculpas pelo lapso e disseram que me ligariam em breve com a resposta definitiva – no que cumpriram logo depois com a afirmação de que, sim, eu trabalharia na famosa Livraria Cultura.
Não fui contratado para fazer parte da equipe do Conjunto Nacional, mas sim a da filial do Shopping Villa-Lobos – e isso foi uma diferença fundamental nos anos que permaneci ali, por três motivos. O primeiro é que os “vendedores do Villa” (como eram conhecidos) tinham um outro modo de atrair os clientes (ao contrário da equipe da Paulista, extremamente competitiva e ágil, por causa da demanda dos clientes daquela região), o que dava mais tranquilidade na hora de oferecer ou indicar um livro; o segundo é que, apesar da remuneração sendo um pouco menor do que a da loja principal, ainda assim quem trabalhava no Villa, se fosse solteiro, sem filhos e sem qualquer outro tipo de problema financeiro, tinha a chance de ganhar uma bela grana no final do mês. Como a comissão de vendas nunca foi individual e sim coletiva (por loja), isso possibilitava, por exemplo, um funcionário ganhar mais de cinco mil reais em tempos de bonança, como a Páscoa e o Natal – na época, mais do que qualquer pobre-coitado que trabalhava no varejo, em especial a Saraiva ou a megastore francesa FNAC (o salário na Cultura ficava, em média, entre três mil e quinhentos e quatro mil reais – um assombro para o setor); e a terceira razão é que a equipe do Villa, mesmo com as tensões do dia-a-dia, era muito mais unida do que a do quartel-general, especialmente na hora de lidar com clientes problemáticos (que eram inúmeros).
Talvez de forma inconsciente – e indo na contramão do que pensava o público sobre a eficiência do time da Paulista –, o espírito de trabalhar na loja do Shopping Villa-Lobos preservava muito mais os primeiros dias da Livraria Cultura, quando ainda era chamada de “Biblioteca Circulante”, nos anos que se seguiram à sua fundação – um empreendimento criado pela mãe de Pedro Herz, Eva, uma alemã que fugiu da Segunda Guerra Mundial justamente em 1939, com seu esposo Kurt.
Como o próprio Pedro narra em seu livro de memórias intitulado O Livreiro (2018, escrito em parceria com a jornalista Laura Greenhalgh), seus pais eram judeus “que vieram para este país literalmente com a roupa do corpo, quando a Europa mergulhava numa longa noite de trevas”, obrigados a viver de forma austera na cidade que os acolheu para sempre – São Paulo.
Kurt Herz (o sobrenome na língua alemã também significa “coração”) tentava sustentar a família trabalhando como representante comercial da indústria de tecidos, vendendo roupas para lojas de diferentes fabricantes. Enquanto isso, Eva ficava em casa com os dois filhos, Pedro e Joaquim, sem saber o que fazer com a penúria que sempre se aproximava no final do mês. Foi quando ela teve uma ideia para ganhar dinheiro sem precisar sair de casa: “o que lhe pareceu mais eficaz”, conta Pedro, “foi comprar um lote de dez livros em alemão, todos best-sellers, para alugar a seus compatriotas em São Paulo”. E assim nasceu a “célula mater” da Livraria Cultura em 1947, “num sobrado no bairro dos Jardins, no número 1.153 da alameda Lorena, sem placa na porta”.
As lembranças de Pedro são muito vívidas daquela época. Então com sete anos de idade, ele recorda que “as dificuldades econômicas do pós-guerra limitavam tudo, inclusive o acesso aos livros. Só que os imigrantes alemães reunidos na cidade, notadamente os judeus expulsos de seus países pela perseguição de Adolf Hitler, tinham um bom nível cultural. Queriam e precisavam ler mais”. Eva Herz percebeu a necessidade de que sua clientela era composta de pessoas que tinham o hábito de leitura, “cultivado na terra natal, certamente em longos invernos”. Com pouco dinheiro, ela comprou o primeiro lote de dez livros de um importador estabelecido na capital; “para cada livro criou uma pequena ficha de cartolina na qual anotaria o nome do inquilino, a data de saída do exemplar e a de devolução, em geral, uma semana depois”, diz o primogênito. Com os livros circulando na comunidade, também cresceu o boca-a-boca e a Biblioteca Circulante foi crescendo, o que fez Eva aumentar e importar o número de títulos (entre eles, havia desde O Diário de Anne Frank, um sucesso da casa, até Doutor Jivago, de Boris Pasternak, e O Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse).
Enquanto testemunhava o modesto sucesso financeiro da empreitada materna, Pedro aprendeu a sua primeira lição de gestão: seus pais “nunca se endividaram para crescer”. “O lucro deve voltar para o negócio”, eles lhe diziam. Nunca tiveram “casa de praia, chácara, fazenda, e mesmo o primeiro carro demorou a estacionar em nossa garagem”. Depois dos títulos europeus, Eva começou a comprar autores nacionais – como Jorge Amado, Erico Veríssimo e Machado de Assis – e, lentamente, os livros tomaram conta da própria casa onde moravam os Herz. A expansão foi tamanha que finalmente Kurt e Eva foram obrigados a alugar um outro imóvel na mesma rua onde moravam, a Augusta. A Biblioteca Circulante só se transformou definitivamente em Livraria Cultura em 1969, quando mudou-se para o Conjunto Nacional, à época um prédio construído especialmente para dar um ar cosmopolita a São Paulo.
O crescimento do negócio foi algo natural: os clientes perguntavam à Eva se ela tinha livros didáticos e revistas. A biblioteca e a livraria conviviam de maneira natural, junto com os Herz nos fundos da casa, e cada parte do casal se revezava na hora do almoço para atender a clientela, sempre exigente e inusitada. Um dia, alguém foi à loja e perguntou a Kurt pelo livro A nossa vida sexual, de Fritz Kahn; para atender ao pedido, o pai de Pedro, dotado de um vozeirão grave, gritou à esposa enquanto ela manobrava as panelas na cozinha: “Querida, ainda temos nossa vida sexual?”.
A VIDA sexual dos funcionários da Livraria Cultura em 2004, o ano em que me tornei um “vendedor do Villa”, era ativa, múltipla e variada, como comprovaram os diversos relacionamentos e casamentos que começaram e terminaram entre a equipe durante o período que permaneci ali, naquele tipo de atitude apelidado internamente como “procriação por cativeiro” (eu mal sabia disso, mas essa seria outra metáfora apropriada).
Trinta e cinco anos depois de se transformar em um dos maiores pontos de referência na Avenida Paulista, a empresa de Pedro Herz (agora no comando definitivo após a morte da mãe em 2001), junto com os filhos Sérgio e Fábio (ambos formados nas melhores escolas de administração do país), inaugurou, no dia 19 de abril de 2000, a filial de 3.200 m2 localizada no Shopping Villa-Lobos, sediado na marginal Pinheiros. Foi o primeiro sinal de uma ambição que envolvia uma considerável dose de risco: entrar no mercado das megastores, o conceito de livraria iniciada no Brasil pela Ática (depois FNAC), e que unia em um único lugar as seções de livraria, discos e filmes.
Para isso acontecer a contento, Pedro, Sérgio e Fábio investiram em um sistema de tecnologia peculiar que amarrava as pontas soltas de informação, catalogação e de controle de tudo que entrava e saía em ambas as lojas. O filho de Eva Herz sempre foi um apaixonado por PABX, fax e internet, estimulando o aperfeiçoamento entre os diversos departamentos da empresa, inclusive indo pessoalmente à Feira de Frankfurt, na Alemanha, para se tornar uma referência nacional no ramo de importação de livros; mas essas inovações também eram o indício de que a arte de vender um livro passava ser vista somente como uma técnica comercial. De fato, criar essa estrutura era algo pioneiro no Brasil – mesmo que, no cotidiano, ela tenha sufocado com mão de ferro a vida profissional do funcionário da Cultura. Porém, não havia outro jeito: ou você entrava na lógica do sistema ou mal conseguiria trabalhar de maneira eficaz.
Esse “sistema” – a coluna vertebral em termos operacionais da Livraria – consistia no seguinte procedimento: vamos supor que você quisesse um livro qualquer, seja nacional ou estrangeiro. Entrava na loja e, aturdido pelo caos planejado que havia no espaço (no caso da Paulista, as prateleiras eram abarrotadas de volumes; já no da Villa-Lobos, a arquitetura da filial imitava de propósito um labirinto), imediatamente perguntava a um vendedor se havia aquele item tão desejado. Se o funcionário fosse sortudo, você já sabia o que comprar, e era apenas encomendar o produto (prazo de sete a dez dias úteis em média para um livro nacional, exceto se a editora ficasse nos confins do Brasil; e um prazo de quatro a seis semanas se o livro fosse importado, seja ele inglês, francês, espanhol ou alemão); ou então pegar o volume numa das famosas rodas de exposição espalhadas pela loja (uma verdadeira invenção da Cultura e que depois seria imitada por outras livrarias).
Contudo, em geral, o funcionário não tinha essa sorte. Salvo as exceções realmente civilizadas (que depois se transformaram em amigos por toda a vida), a maioria da clientela que frequentava a “antiga Cultura” não era nada sofisticada, como alguns imaginam; era, isso sim, extremamente complicada e, muitas vezes, grosseira com o vendedor, tratando-o igual a um escravo – como se não bastasse o expediente de oito horas em pé, com apenas um intervalo para almoço ou jantar, uma folga por semana, outra folga dupla a cada dois finais de semana e a atmosfera estressante que havia nos bastidores.
Na prática, isso significava duas coisas: a primeira é que o funcionário era obrigado a decifrar o que o cliente realmente queria e, por isso, era imperativo usar da memória para adivinhar o produto desejado (naqueles anos distantes de 2000, ainda não havia Google – e, mesmo assim, o sistema de tecnologia da Cultura não permitia consulta a sites externos, exceto o próprio endereço virtual da empresa. Isso mudaria no final do meu período na empresa, mas aí era tarde demais); e a segunda é que, já que a Cultura era também uma empresa de “serviços” (e não apenas uma rede de varejo), o vendedor também tinha de atender aos caprichos mais loucos, em especial quando o produto precisava ser entregue a um determinado endereço pois era um presente importante ou algo similar, que deveria ser executado em um tempo muito exíguo.
Neste quesito, a logística da Cultura era impecável: junto com a equipe da internet e do site (responsável por 30% das vendas da empresa nos anos 2000), os Herz construíram uma estrutura que permitia que o livro chegasse em sua residência em menos de oito horas, se fosse enviado dentro do horário comercial na região metropolitana da capital, e em menos de 48 horas, se você morasse fora do estado de São Paulo (o futuro intercâmbio de transferências entre as lojas, quando a Cultura expandiu-se para Porto Alegre, Recife e Curitiba, agilizou ainda mais esse processo).
É muito provável que você nunca soube disso, mas o seu livro, o seu CD e o seu DVD passavam por, no mínimo, umas cinquenta pessoas antes de chegar às suas mãos – e cada item era catalogado minuciosamente por notas fiscais que indicavam a entrada numa expedição lotada de caixas gigantescas e de rapazes mal-encarados que gritavam entre si, passando pela intermediação da parte de reservas com meninas que guardavam cuidadosamente o que você queria, terminando com a saída do produto em um caixa onde em geral sempre tinha algum funcionário – homem ou mulher – que, entre uma e outra nota de dinheiro ou uma autorização aprovada de cartão de crédito, sabia que, para subir na hierarquia da Livraria Cultura, a única forma de fazer isso era sendo um vendedor.
SIM, o núcleo da empresa estava justamente no setor de vendas – e, quando os Herz passaram a desprezar isso, a ruína de tudo o que construíram foi a única consequência possível. E isso começou quando a diretoria começou a confiar de forma absoluta no tal do “sistema”. Pouco importava se o vendedor havia cometido um erro de procedimento por uma bobagem; o “sistema nunca errava”, era o que diziam, mesmo com todos os bugs possíveis que ocorriam na hora de emitir uma simples nota fiscal – e a punição era exemplar (o funcionário pagava com uma “doação” – leia-se: dinheiro retirado do seu próprio salário – se ele errasse numa entrega). Por outro lado, este mesmo sistema permitia uma autonomia única ao funcionário que ganhava de brinde um curso de autogestão de negócios e de fluxo de processo que ninguém teria em qualquer outra escola de primeiro padrão no Brasil (a prova disso é como Sérgio Herz, formado nesse tipo de faculdade, mal sabia mexer direito com a própria invenção que idolatrava).
O irônico disso tudo é que, apesar de Pedro Herz se autointitular como um “livreiro”, preocupado com a disseminação do livro e da leitura no Brasil, ele não conseguiu compreender para si mesmo (e para seus filhos) que havia uma distinção fundamental entre cumprir esse papel e ser um mero vendedor – e que esta diferença era o que tornava a Livraria Cultura uma experiência ímpar no cenário artístico do país como um todo. Essa empresa privada fez mais para o escritor, o artista plástico, o ator de teatro e de cinema do que qualquer Lei Rouanet ou instituição pública. Era tão plural que permitia, entre seus corredores, as presenças de José Saramago, Yoaní Sanchez, Eduardo Suplicy, Lou Reed, David Lynch, Sergio Moro e Lula, tanto nos lançamentos de livros como nas estantes. Nos anos 1980, a sua fama era tamanha entre a elite intelectual que, nas célebres mesas que ficavam fora da loja do Conjunto Nacional (ocupadas por gente do quilate de um Marcos Rey, Ignácio de Loyola Brandão e Mario Chamie), você podia encontrar ninguém menos que Caetano Veloso e Haroldo de Campos declamando poemas sem que ninguém os importunasse com pedidos de autógrafos.
E todo esse encanto tinha como centro esse personagem anônimo – o livreiro, que nunca foi, de maneira alguma, um vendedor qualquer. O primeiro é diferente do segundo por causa de um detalhe essencial: o livreiro trata o objeto “livro” sabendo da sua importância espiritual, como a pedra angular da construção de um imaginário, enquanto o vendedor acredita que o mesmo “livro” pode ser tratado como se fosse um par de sapatos, uma peça de roupa ou então – o que é pior – um eletrodoméstico. A grande lição que a Cultura transmitia a quem começava a trabalhar ali era que, mesmo se o sujeito não gostasse de divulgar um livro (e até mesmo do ato de leitura em si), ele era obrigado a se virar e começar a sua educação de qualquer jeito (neste ponto, a empresa facilitava na compra de itens das próprias lojas, com generosos descontos que transformavam o vendedor em um “cliente interno”). E quem já gostava das “belas letras” – como era o meu caso – foi também obrigado a lidar com as obrigações da vida e aprender que elas não eram somente sentar sozinho em uma sala e imaginar um mundo paralelo. Éramos “companheiros de trincheira”, semelhantes ao vaso que é moldado pelo oleiro que, às vezes, tinha de quebrar a argila em dois ou três pedaços para que ela ficasse finalmente perfeita para o seu uso no futuro.
O PROBLEMA foi que o oleiro se comportava como um verdadeiro carrasco. Os Herz nunca foram modelos no quesito “gentileza”, especialmente no modo como tratavam seus funcionários. Quando um deles chegava na loja, sempre para vigiar, jamais para incentivar, instaurava-se um clima de temor e terror. Geralmente, Sérgio e Pedro não cumprimentavam os vendedores (apenas Fábio fazia isso e ele sempre foi o mais simpático do trio); iam conversar com os “compradores” (os verdadeiros administradores das filiais, que cuidavam do estoque e gerenciavam a equipe).
Muitas vezes, esses “compradores” eram a proteção que evitava que a família Herz lidasse diretamente (normalmente com resultados catastróficos), com a equipe da loja; isso era fundamental porque quando um dos três falava com algum funcionário, era frequentemente por meio de um esporro cabuloso (cada um que passou pela Cultura já levou uma bronca de Sérgio Herz e até hoje não se esquece da sua face absolutamente deformada, balbuciando coisas impronunciáveis; eu tive o meu “batismo de fogo” no meu primeiro mês de trabalho porque me atrapalhei no momento de atender um cliente – e não dormi direito por duas semanas seguidas).
A rotatividade de vagas era intensa na empresa porque o expediente era exigente e também porque a própria equipe que comandava a loja pouco se importava de fato com o que estava acontecendo na vida pessoal do vendedor. Afinal, os “compradores” precisavam agradar aos Herz – e novos sacrifícios eram exigidos a cada semana. Mas, por outro lado, havia sim espaço para crescimento de pessoas que se mostravam conhecedoras e interessadas no mundo livreiro e nos processos de compra, consignação, vendas, e outros que tinham facilidade e talento na condução das equipes de vendas, além daqueles que eram peritos no sistema operacional da Livraria. Portanto, quem permanecia na Cultura ou era alguém que havia conquistado uma clientela leal, exibia bons resultados de vendas e dominava o que praticava, ou era alguém que praticava a famosa regra de qualquer empresa: puxar o saco dos patrões.
Isso criava uma “seleção natural” na Livraria: havia aqueles que subiam na hierarquia pois se mostravam leais à diretoria e havia aqueles que só permaneciam ali para pagar suas contas no final de cada mês. Os primeiros ganhavam regalias sobre as quais os outros mortais mal sabiam que existiam – e havia um culto à fidelidade e, ao mesmo tempo, o incentivo à delação constante. Assim, os Herz já ajudaram funcionários que estavam endividados; que estavam com doenças graves; com problemas de moradia; e que eram alcóolatras funcionais. Em troca, esses empregados observavam os outros colegas da empresa e, dependendo do humor e do gosto de cada um, deduravam erros verdadeiros ou imaginários.
Logo, o que existia na Livraria Cultura era, com o perdão do trocadilho, uma “cultura do medo”, que nos contaminava no dia-a-dia e a qual era acentuada nas grotescas reuniões com a diretoria, realizadas no meio de cada mês para discutir o balanço financeiro da loja. Era aqui que os Herz davam o seu show de horrores. O personagem principal era, obviamente, Sérgio, o “tira do mal”; raramente Fábio aparecia nelas (pelo menos no Villa); e Pedro ficava na esquiva, somente observando, como se representasse o papel de “policial bonzinho”. O lugar desses encontros era a Sala Eva Herz, com 170 lugares, e inaugurada para ser uma homenagem à fundadora da empresa, mas que acabou por se tornar um palco de memória infame.
Era muito difícil uma reunião com os vendedores acabar em um final feliz. Depois de 2006, por causa da abertura das lojas no Shopping Market Place (localizado no bairro do Morumbi, competindo assim com o público daquela região, que ia a Pinheiros) e a gigantesca central da Paulista, agora reformulada por completo onde era o Cine Astor e com 4200m2, a filial do Villa-Lobos teve uma queda gigantesca nas vendas. Com isso, a diretoria acionou a equipe para saber o que estava acontecendo. Ocorre que, em nenhum momento, os Herz quiseram admitir para si mesmos que a dilapidação da primeira megastore da Cultura acontecia justamente porque eles estavam com uma estratégia completamente equivocada – na qual a expansão de diversas lojas na cidade de São Paulo (e depois no resto do Brasil, com inaugurações em Campinas, Brasília, Porto Alegre, Curitiba, Recife, Salvador, Fortaleza e Rio de Janeiro) era apenas o primeiro passo para uma canibalização entre os diversos tipos de alvos comerciais que a Livraria abrigava.
Os “vendedores do Villa” foram as cobaias frequentes do velho experimento social que os Herz sempre praticaram com seus funcionários, quando a diretoria não queria admitir qualquer tipo de equívoco. Em uma das reuniões que aconteceram na Sala Eva Herz, com a crise na filial já estabelecida (mesmo com uma estimativa total de faturamento calculada em 2009 de R$ 450 milhões), Sérgio e Pedro chamaram a equipe de vendas e, sem dizer bom dia a todos ali presentes, começaram uma litania de xingamentos. Lembro-me nitidamente que Sérgio nos chamou de “bostas”, “seus merdas”, “imprestáveis” e que “se vocês acham que são indispensáveis, saibam que não são indispensáveis porra nenhuma. Todos são dispensáveis, isso sim, e eu posso substituir cada um de vocês aqui – e, mais, vocês não terão como ir para um lugar melhor, com o salário que ganham nesta empresa porque vou queimá-los no mercado de trabalho”. Talvez para contrabalançar a agressividade do filho, Pedro complementou, afirmando que “era hora de cometermos novos erros, e não os erros do passado”, mas que era também a hora de nós percebermos que “estamos indo ladeira abaixo, e lá no fundo existe um lago cheio de cacos de vidro”.
O rendimento da loja do Villa-Lobos ficava cada vez mais claudicante – e continuaria assim até o seu fechamento, em 2019. Nesse meio tempo, os abusos da diretoria dirigidos aos empregados passaram a ser notórios, com declarações desses contratados feitas a sites de internet sobre demissões, perseguições e achaques, além de ações trabalhistas que pediam grandes quantias reparatórias. Pouco a pouco, a estratégia de canibalização imposta pela diretoria em relação às filiais também se somou a uma outra grande loucura corporativa: a união com o banco de investimento NEO, que simplesmente decidiu, por meio de cálculos feitos em inúmeras planilhas, que o salário dos livreiros tinha de ser drasticamente diminuído. O que se seguiu foi a óbvia decadência da qualidade do setor de vendas e do interesse do funcionário de continuar na empresa: “Por que vou suportar os assédios desses patrões se eles não me dão nada em troca?”, era o que pensavam. Uma ação trabalhista era mais vantajosa do que continuar naquele ambiente insalubre – e os “escravos de Jó” começaram a errar o ritmo da cantiga de propósito.
A expansão da Cultura atingiu igualmente o trato com as editoras. Até 2011, a empresa era absolutamente primorosa no pagamento com seus fornecedores. Ela sempre comprava os livros, e era muito difícil praticar a consignação (quando se pode pagar apenas os exemplares vendidos nas lojas depois de um período estendido de 60 até 90 dias úteis). Diferente da Saraiva e da Siciliano, as competidoras diretas no mercado e que às vezes demoravam para cumprir o prazo consignado, os editores gostavam de trabalhar com os Herz porque todos tinham certeza de que o dinheiro deles seria depositado em suas contas. Mas, então, em meados de 2014, a Cultura começou a praticar somente a consignação; a compra de livros ficou apenas acessível para os grandes grupos editoriais (entre eles, Companhia das Letras e Record); e as outras editoras, especialmente as independentes, dependiam dos humores dos “compradores” da Cultura para saber se iam receber ou não o valor descrito na nota fiscal de consignação.
A Cultura alegava que a mudança de procedimento se devia à entrada da Amazon – o leviatã do varejo criado por Jeff Bezos – no mercado editorial brasileiro naquele mesmo ano. E, de fato, a empresa americana começou a fazer algo que foi instituído pelos Herz no passado: a compra de livros, sem dar prioridade à consignação, pelo menos na maioria dos seus acordos com as editoras nacionais. Contudo, a estratégia expansionista da Livraria, somada a uma péssima gestão de funcionários e o sucateamento da própria infraestrutura que criaram (em 2016, já não era mais possível fazer uma transferência entre as lojas com a agilidade de antes), confirmaram que a Amazon não foi a grande culpada da derrocada dos Herz. A vinda da companhia de Jeff Bezos ao Brasil foi apenas o catalisador de uma empresa que se autodestruiu porque ficou imersa em sua própria “procriação por cativeiro”, incapaz de admitir os seus problemas internos (simbolizados pela saída de Fábio Herz da diretoria em 2018). E apesar da aquisição de uma combalida FNAC em 2017 (vendida depois em 2020 porque a própria Cultura não tinha condições de suprir a enorme demanda de produtos) e da Estante Virtual em 2019 (repassada um ano depois à Magazine Luíza pois não entendeu a agilidade exigida pelos sebos de internet), ela foi perdendo sua força, até chegar em 2018 ao pedido de recuperação judicial feito em plena pandemia, principalmente para cobrir um buraco de R$ 285 milhões.
TODOS esses números escondem um drama humano: o dos funcionários que, ao serem demitidos pela empresa, ainda aguardam as suas reparações trabalhistas legalmente garantidas. Em 14 de fevereiro, cinco dias depois da decretação de falência proclamada pelo juiz Ralpho Waldo De Barros Monteiro, a Livraria resolveu promover um evento chamado “Ocupe a Cultura”, no qual diversas personalidades do mundo artístico – entre elas, atores e artistas que tiveram peças exibidas no Teatro Eva Herz, localizado dentro da famosa loja do Conjunto Nacional e inspirado na sala de mesmo nome que havia no Villa-Lobos – defendiam a permanência do estabelecimento, apesar de todas as dívidas que os Herz precisavam pagar, de editoras a vendedores.
A presença entre as celebridades foi irrelevante, mas o fato ganhou as manchetes dos jornais porque uma funcionária, Jéssica Ribeiro Santos, 32 anos, protestou e disse sem meias palavras: “Eu acho isso vergonhoso”, ela disse sobre as seis parcelas de R$ 600 de sua restituição que a livraria estaria devendo. “Vim aqui pedir o que é meu, eu trabalhei, eu prestei serviço. Antes de vocês se lamentarem, lembrem-se que a Cultura faliu devido à má administração do senhor Sérgio Herz”. O detalhe que não foi mencionado na imprensa, porém registrado nas imagens viralizadas pela internet, é que Jéssica também afirmou que teve de se prostituir para conseguir pagar suas contas enquanto ainda espera pelo resto do dinheiro devido. Durante o evento, Pedro Herz estava presente; porém, ele ficou em silêncio o tempo todo.
Naquela mesma semana, a Cultura conseguiu suspender a liminar de decretação da falência – e a loja no Conjunto Nacional funcionava normalmente, com livros de fundo de catálogo sendo expostos para disfarçar o fato de que a maioria das grandes editoras mandou encaixotar seus lançamentos porque não sabia se iria receber o valor negociado com a empresa durante o período de recuperação judicial. Como se isso não fosse suficiente, paira a sombra de “relatos de indícios de fraude”, escrita na sentença do Dr. Ralpho, principalmente em “movimentações financeiras realizadas por sócios da empresa [3H, a holding que comanda as operações da Cultura, uma óbvia referência aos Herz]”, além da reclamação de “diversos credores” que “também noticiaram o inadimplemento dos seus créditos”. Contudo, a própria administradora judicial responsável pela recuperação da Cultura – o escritório Alvarez & Marçal, que pediu para ser destituída da função – “reiterou a informação de que, desde setembro de 2020, não recebe as parcelas dos seus honorários”, acumulando-os na soma de R$ 806 mil. Em outras palavras: ao contrário do que o jovem Pedro aprendeu com seus pais Kurt e Eva, o lucro não voltava mais para o negócio porque a família inteira teve de se endividar para crescer às custas dos outros.
NA PRÁTICA, a derrocada da Livraria Cultura não tem nada a ver com a crise financeira global, a inflação brasileira, as inovações do mercado de livros (especialmente com o surgimento do e-book, substituindo o livro impresso, segundo vários especialistas) ou a paralisia social provocada pela pandemia do coronavírus (e até mesmo com o endividamento das Lojas Americanas, recentemente divulgado, que afetou as grandes editoras com um prejuízo assustador de R$ 85 milhões). Tem a ver com um único fator: os Herz passaram a menosprezar justamente o coração do que os mantinha vivos no comércio – o amor pelos livros.
A prova de que esse respeito por este objeto enigmático – o livro – muda por completo o destino de um negócio está no crescimento de livrarias como a tradicional carioca Travessa (que migrou com sucesso para São Paulo), a Mandarina, a Martins Fontes, a Vila e a Leitura – e nenhuma delas jogou a culpa para a Amazon como se ela fosse o bode expiatório. No exterior, a rede Barnes & Noble, que todos acreditavam que teria o mesmo fim melancólico de uma Cultura (em 2018, perdeu US$ 18 milhões e demitiu cerca de 1.800 empregados), conseguiu ressuscitar usando de técnicas tradicionais de vendas entre os livreiros.
Segundo o crítico cultural Ted Gioia, que estudou minuciosamente o caso da empresa, o erro dela foi imitar a Amazon, privilegiando a venda de um e-book que nunca emplacou – o Nook; e assim o novo CEO da Barnes, James Daunt (ex-Waterstones, notória cadeia de livros na Inglaterra), criou uma estratégia contraintuitiva ao que os analistas de mercado acreditavam. Em primeiro lugar, recusou-se dar descontos aos livros; em segundo, não permitiu mais que a rede recebesse dinheiro das grandes editoras para promover seus lançamentos; depois, privilegiou a indicação dos livreiros sobre suas obras favoritas; e, por último, aproveitou a pandemia para que os funcionários depurassem o acervo de cada loja e colocassem livros que surpreendessem os leitores – e não a produção padronizada que o mercado despeja nas prateleiras. O resultado? As vendas na Barnes & Noble começaram a voltar ao que era antes da pandemia – e, no futuro, o plano da rede é dobrar o número das 16 novas filiais que foram inauguradas no ano passado. Para quem estava prestes a morrer, isto é o que se chama de um grande retorno.
RECORDO-ME que, poucos meses antes da minha saída da filial do Villa-Lobos, para finalmente exercer a profissão de jornalista, houve uma reunião de vendas em que os “compradores” finalmente convenceram a diretoria de que ela deveria escutar as reivindicações dos funcionários. Em um sorteio, fui escolhido para presidir um desses encontros e mostrar o que estava acontecendo ali de fato. Contudo, eu também sabia que, se fosse explícito, seria demitido ou então poderia ser prejudicado no mercado de trabalho.
Portanto, bolei uma estratégia subversiva. Consegui um DVD e um telão e exibi para o setor de vendas, diante de Pedro e Fábio, um trecho específico do filme Um sonho de liberdade (1996), de Frank Darabont. Para quem ainda não conhece esse clássico do cinema, trata-se da história de Andy Dufresne (interpretado por Tim Robbins), um homem inocente, acusado de ter assassinado a esposa e que vai para uma penitenciária de segurança máxima. Lá, começa a planejar uma bem-sucedida e minuciosa fuga, que demora vários anos, tendo apenas quatro instrumentos para ajudá-lo: argila, pedras, um martelo e alguns posteres gigantescos de musas da sétima arte, de Marilyn Monroe a Rachel Welch. A cena que mostrei no auditório foi o momento em que Andy confronta a administração implacável do presídio. Ele põe no autofalante do pátio, à revelia do diretor da prisão, um trecho sublime da ópera As Noites de Fígaro, de Wolfgang Amadeus Mozart; os presos ficam embevecidos por ouvir tal maravilha e, por um instante, a vida em cativeiro parece mais leve.
Depois que o trecho foi exibido na reunião de vendas, ninguém falou nada. Afirmei que trabalhar na Cultura era justamente cumprir o papel de Andy: espalhar conhecimento para as pessoas que mais necessitavam dele. A princípio, todos ali aceitaram essa conclusão. Mais tarde, quando eu já estava no expediente, Pedro Herz veio silenciosamente ao meu posto de trabalho e me dirigiu a palavra, pela única vez na minha vida: “Você por acaso quis dizer que trabalhar aqui é igual a viver numa prisão?”. Ocupado com um cliente que entrava na loja, e sem a intenção de dar a verdadeira resposta, apenas disse: “Se a carapuça lhe serviu, não posso fazer nada, seu Pedro”.
E assim fui embora. Pedi demissão em março de 2007 e já não era mais um funcionário da célebre Livraria que tanto ocupou o meu imaginário de moleque. Havia me transformado em um adulto e cumpri integralmente a minha lição de modelagem e o meu batismo de fogo naquela empresa, preservando, acima de tudo, o meu fascínio pelos livros. Os Herz foram os artesãos que me ensinaram, com seu modo bem peculiar, a humildade de ser barro paciente e aguçar a ouvir o que deveriam ser as obrigações da vida. É uma pena que eles tenham sido incapazes de aprender a educação que impuseram aos outros; e espero sinceramente que consigam – como o próprio Pedro dizia naquelas amargas reuniões de vendas ocorridas na sala com o nome de sua mãe – deixar para trás o que foi feito no passado e cometer novos erros.
Excelente relato, didaticamente elecando causas, separando os efeitos, e com óbvio conhecimento de insider. Viveu na pele.
Por diversas ocasiões tive a oportunidade de conversar com o Pedro que fazia questão de circular pela loja, hábito cultivado desde o primeiro período ainda de 'pés no chão'. Já na fase ulterior megalomaníaca de grandeza e orientada pela vaidade - evidentemente influenciada pelos filhos -, sua presença era rara..
Em paralelo também acompanhava a Livraria da Vila, um experimento exitoso em que a boa cabeça de administrador sempre foi um norte presente, apesar do continuado sucesso.
Triste e melancólico fim. Solidariedade com os que sofreram no moedor de carne. RIP Pedro.
É bom ouvir essas histórias. Fazer uma empresa crescer, passar por gerações não é fácil, o erro é certo, saber lidar com eles é o diferencial. E no final o empreendedor é sempre o vilão. Muito obrigado a todos que construíram essa história da Livraria Cultura e apesar de tudo até a família Herz.